quinta-feira, 28 de julho de 2011

EDITORIAL


Ouvindo uma entrevista do escritor Antonio Prata, quando cumpria a programação do lançamento do seu mais recente livro de crônicas com o original titulo “Meio intelectual, meio de esquerda”, entre outras coisas, aprendi que crônicas não precisam de tema, podendo, inclusive, ser um mosaico de assuntos. Ah é?! Santa ignorância, a minha!

Quando resolvi criar este Blog, a intenção foi e continua sendo, registrar emoções que vivencio no meu dia a dia. Algumas vezes revisitando-as, sinto desejo de registrar novas descobertas sobre elas. Afinal, hoje não sou o que fui ontem.

Portanto, a idéia é que meu texto seja livre. Mas, como a nossa liberdade, inclusive e principalmente, a de expressão, sofre algumas restrições, rendi-me a algumas que me impus sem nada que as justificassem e outras, impostas por circunstâncias que me parecem imutáveis.

Pessoalmente, acho que quem escreve deve ser uma pessoa atenta. Ao mundo e a si mesmo. Deve estar conectado com a dinâmica dos acontecimentos e optar entre descrevê-los sem nenhum juízo de valor, interpretá-los, comentando aspectos que considere relevantes ou, simplesmente, fazer um registro das emoções que lhe causaram. Estas possibilidades são como holofotes no fundo do túnel quando, quem escreve jornalista, escritor ou diletante, tem, por motivos vários, bloqueada sua criatividade.

Não tendo nenhuma formação em comunicação, sinto-me livre para escrever o que quiser resguardando, na medida e nos limites do “meu possível”, o respeito e a obediência às regras gramaticais e a uma ortografia perfeita. Sei, que nem sempre isto acontece.

Como escrevo com o coração na ponta dos dedos, afastar-me desta marca pessoal é uma temeridade, já que um Blog é uma mídia pública. Portanto, tenho que me expor e, por isto, devo ter consciência dos limites do meu horizonte. Embora, querendo, podemos descobrir o quanto pode ser infinito.

Não obedecendo à necessidade de falar dos sentimentos quando redescubro a sensação de quietude em respirar pausada e prazerosamente ou do arrebatamento quando ouço uma música que me remete a alguma situação marcante, estou promovendo um boicote a este Blog. Quando acordo nostálgica ou suavemente feliz, surfando no mar cheio de ondas que compõe o contexto do meu perfil emocional, se não registro, não estou sendo verdadeira.

Alguém sabe que uma das minhas fobias é estar às dezoito horas longe das paredes protetoras da minha casa? Que aquele lusco fusco, o céu avermelhado despedindo-se do dia ou carregado de nuvens negras prenunciando uma noite chuvosa e, para compor o cenário fóbico, pessoas trancadas com seus pensamentos nos seus meios de transporte, indo para seus respectivos mundos, indiferentes ao que acontece ao seu redor? Alguém sabe a desestruturação emocional que estas circunstâncias interligadas provocam? Que enquanto ouço a Ave Maria, seja de Gounaud ou Schubert, minha garganta pulsa até que lágrimas escorrem pelo meu rosto?

Alguém sabe que sinto culpa por detestar o Natal sem nenhum motivo que justifique este sentimento? Que se pudesse, faria um “catado” de pessoas que considero fundamentais e as levaria para uma ilha deserta sem musiquetas em Shoppings e decorações de pinheiros cobertos de neve? E que, tenho certeza, um dia me lembrarei destes “detestados natais” com enorme saudade?

O meu objetivo é confessar minhas contradições, desnudá-las dos véus das conveniências e mostrar-me uma pessoa em transformação, emergindo e submergindo, egoísta e magnânima, em luta constante contra preconceitos embutidos nas sutilezas da minha forma de encarar o mundo

Mas, preferi filtrar meus sentimentos. Cair na armadilha de me sentir obrigada a opinar sobre acontecimentos do cotidiano como se fosse uma comentarista de um tele-jornal.

Fugindo à minha proposta inicial me afastei da emoção como se só a mim interessasse o que sinto, quando o que sinto pode ser o que muita gente sente, por mais singulares que sejamos e assim me conecto com os sentimentos do mundo. Em resumo, emprestei a este Blog a sobriedade das coisas velhas, amarradas a idéias preconcebidas, não lhe permitindo o direito de ser o que quiser.

A entrevista a que me referi lembrou-me que tenho que ter a humildade, como aprendiz que sou e serei por muito tempo, que vão acontecer momentos em que nada tenho a dizer senão que fico encantada com a perspectiva de conhecer o Marrocos, a Turquia ou qualquer país exótico e que um filme me deixou sem fala e pensativa por vários dias.

terça-feira, 12 de julho de 2011

80 ANOS

Atualmente, muitas pessoas podem viver oitenta anos. Até mais. Os avanços da Ciência têm sido decisivos para a longevidade do homem. Esta é uma das vitórias da inteligência humana que devemos comemorar.

Entretanto, viver oitenta anos não é fácil e minha Mãe, Lucia viveu e vive cada dia desta fase da existência de forma digna e bela. São vinte nove mil e duzentos dias entre o primeiro choro, no nascimento, à ingenuidade das brincadeiras da infância com os quatro irmãos, por quem, até hoje, nutre um sentimento de “quase mãe”; vencendo as inseguranças do afastamento necessário e sofrido da casa paterna em busca do conhecimento e da independência; às escolhas inerentes à passagem do tempo, acompanhadas de alegrias e sofrimentos. Tudo isto esmerilando caráter e personalidade que a tornaram uma pessoa serena e paciente.

A vida a que me refiro de forma tão resumida e simples, não foi, não é e jamais poderá ser classificada como uma vida banal. A história de minha Mãe, que hoje, 13 de julho de 2011, celebramos com uma mistura de carinho, gratidão à vida e euforia. Oitenta anos de uma existência, que se justifica a cada dia.

Quase sessenta anos de casamento, filhos, netos, bisneto, amigos que vão, amigos que chegam e ficam. A história passando diante dos seus olhos verdes que brilham a cada possibilidade de interferir no seu curso, fazendo a diferença num mundo carente de atitudes. Tudo isto sem incomodar-se com a omissão das pessoas e da força das circunstâncias.

Ainda muito jovem, morando num pensionato, qualquer atraso no pagamento da mensalidade era impedida de alimentar-se adequadamente e, muitas vezes, a fome já corroeu-lhe o estômago com a mesma intensidade que a vontade de crescer tornava-se uma meta que precisava ser vencida. A vitória que buscava não afagava seu ego, mas enriquecia seu ideário de justiça e sua necessidade de ser útil.

Vive com a mesma dignidade, dias de sol escaldante, de chuvas torrenciais ou noites estreladas com luas que minguam e renovam-se. Aparentemente, uma vida igual a muitas outras vidas, acariciada e castigada pela passagem do tempo.

Todos que a amam e a admiram agradecem o privilegio da sua contemporaneidade.

Não vou nem posso fazer a estatística de quantas crianças minha Mãe alfabetizou, numa escola, paupérrima e precária, no subúrbio de Coutos. Lembro-me das idas e vindas nos trens da Leste Brasileira e eu, ainda criança, tendo que acompanhá-la, já que não tinha quem de mim cuidasse. Ainda mantenho viva na memoria os sacrifícios e as noites, insones, de estudos, para graduar-se Psicóloga, sempre contando com o apoio e o incentivo do meu pai. Tampouco, será necessário mais um registro da sua irretocável trajetória no Serviço Público, com a motivação de quem abraça uma grande causa. Muito menos, que faz da sua aposentadoria um apostolado de caridade, através da participação na gestação e no nascimento do Centro Espírita Joana de Ângelis, onde, na medida das suas possibilidades ajuda a manter vivo, prestando relevantes serviços à famílias carentes. Estas fases da sua vida todos já conhecem.

Não existe nada na vida de Lucia, minha Mãe que não me inspire ternura, carinho e gratidão. Tenho certeza que meus irmãos, Izabel e Luciano, subscrevem este texto.

Costumo dizer que nossas conversas acontecem sempre livres de preconceitos ou moralismos e são impregnadas da modernidade com que conversamos com os mais jovens dos nossos amigos. Ela, sabiamente, acompanhou as mudanças do mundo, as compreende e, principalmente, as aceita. Minha mãe recicla lixo desde que éramos crianças e tem consciência dos seus direitos e deveres de cidadã. Vota com consciência e patriotismo e sempre interfere quando testemunha alguma iniquidade.

Lê jornais, livros de Filosofia, Psicologia, História contemporânea e tudo mais que suas laboriosas mãos conseguem alcançar. Vive conectada com o mundo através de todas as midias que dispõe em sua casa, de onde pouco sai. Embora mantenha uma inquietude quase juvenil, sabe que é chegada a hora de, com meu pai, cuidarem um do outro.

Não por acaso tem amigos de todas as idades e é adorada pelos netos, que a teem como referência marcante. Consultam-na sobre tudo, dos resultados de jogos locais e internacionais de qualquer esporte, até sobre regras gramaticais. Participou das gincanas estudantis aos vestibulares e das formaturas com uma emoção que nos comovia. Carinhosa e cuidadosamente respaldou suas formações intelectuais, enviando-lhes recortes de jornais com textos de relevância, indicando-lhes livros importantes, incentivando-os à pesquisa e revisando trabalhos científicos, entre outros mimos que só às avós é permitido o privilegio.

Não pretendo esgotá-la em tão poucas linhas nem prometo ser modesta. Só verdadeira. Até porque, a verdade, como valor, foi ela e meu pai que me ensinou: ”Filho meu não mente!” Diziam. Meus irmãos também absorveram este princípio e hoje, nós o repassamos para nossos filhos.

Falar na totalidade de quão rara é a personalidade da minha Mãe seria uma tarefa impossível, pois a riqueza da sua vida torna-a, além de um “alguém” que a cada dia que vive acrescenta, e acrescentando torna-se indefinível e inesgotável.

Na vida de Lucia, minha Mãe não há nada que não possamos relembrar sem que nos sintamos engrandecidos por ter sido por ela gerados, o que nos tornam pessoas responsáveis por acatar e respeitar suas singularidades, evidenciadas nas suas maiores virtudes: a humildade, o desapego a tudo que é material e a disponibilidade em ajudar a quem quer que a procure, inclusive e principalmente, sem valorar as justificativas de quem ajuda. Simplesmente acolhe, de forma generosa e incondicional.

Despretensiosa, nunca fez questão de ser reconhecida como uma pessoa bondosa. Mas exige ser lembrada pelo senso de justiça, traço marcante na sua personalidade. Dona de um caráter firme sempre diz o que pensa ainda que incomode ou seja julgada pela sinceridade exacerbada.

Entretanto, a imagem mais amorosa, entre muitas, que tenho de minha Mãe é sutil e singela: Todas as vezes que lhe faço uma visita e despeço-me, descendo as escadas do seu apartamento que ainda chamo “lá em casa”, sentimento de posse de um passado que teima em continuar presente, alcançando o portão da entrada sempre olho para cima e vejo, pela fresta da cortina da sua sala, sempre arrumada com seus objetos de estimação, seu rosto sereno e seu olhar expectante acompanhando meus passos, numa misteriosa mistura de “adeus” e “até breve”, impregnada de um ingênuo sentimento de que me protegerá até que chegue sã e salva, na casa que chamo minha.

Alice Rossini