terça-feira, 12 de julho de 2011

80 ANOS

Atualmente, muitas pessoas podem viver oitenta anos. Até mais. Os avanços da Ciência têm sido decisivos para a longevidade do homem. Esta é uma das vitórias da inteligência humana que devemos comemorar.

Entretanto, viver oitenta anos não é fácil e minha Mãe, Lucia viveu e vive cada dia desta fase da existência de forma digna e bela. São vinte nove mil e duzentos dias entre o primeiro choro, no nascimento, à ingenuidade das brincadeiras da infância com os quatro irmãos, por quem, até hoje, nutre um sentimento de “quase mãe”; vencendo as inseguranças do afastamento necessário e sofrido da casa paterna em busca do conhecimento e da independência; às escolhas inerentes à passagem do tempo, acompanhadas de alegrias e sofrimentos. Tudo isto esmerilando caráter e personalidade que a tornaram uma pessoa serena e paciente.

A vida a que me refiro de forma tão resumida e simples, não foi, não é e jamais poderá ser classificada como uma vida banal. A história de minha Mãe, que hoje, 13 de julho de 2011, celebramos com uma mistura de carinho, gratidão à vida e euforia. Oitenta anos de uma existência, que se justifica a cada dia.

Quase sessenta anos de casamento, filhos, netos, bisneto, amigos que vão, amigos que chegam e ficam. A história passando diante dos seus olhos verdes que brilham a cada possibilidade de interferir no seu curso, fazendo a diferença num mundo carente de atitudes. Tudo isto sem incomodar-se com a omissão das pessoas e da força das circunstâncias.

Ainda muito jovem, morando num pensionato, qualquer atraso no pagamento da mensalidade era impedida de alimentar-se adequadamente e, muitas vezes, a fome já corroeu-lhe o estômago com a mesma intensidade que a vontade de crescer tornava-se uma meta que precisava ser vencida. A vitória que buscava não afagava seu ego, mas enriquecia seu ideário de justiça e sua necessidade de ser útil.

Vive com a mesma dignidade, dias de sol escaldante, de chuvas torrenciais ou noites estreladas com luas que minguam e renovam-se. Aparentemente, uma vida igual a muitas outras vidas, acariciada e castigada pela passagem do tempo.

Todos que a amam e a admiram agradecem o privilegio da sua contemporaneidade.

Não vou nem posso fazer a estatística de quantas crianças minha Mãe alfabetizou, numa escola, paupérrima e precária, no subúrbio de Coutos. Lembro-me das idas e vindas nos trens da Leste Brasileira e eu, ainda criança, tendo que acompanhá-la, já que não tinha quem de mim cuidasse. Ainda mantenho viva na memoria os sacrifícios e as noites, insones, de estudos, para graduar-se Psicóloga, sempre contando com o apoio e o incentivo do meu pai. Tampouco, será necessário mais um registro da sua irretocável trajetória no Serviço Público, com a motivação de quem abraça uma grande causa. Muito menos, que faz da sua aposentadoria um apostolado de caridade, através da participação na gestação e no nascimento do Centro Espírita Joana de Ângelis, onde, na medida das suas possibilidades ajuda a manter vivo, prestando relevantes serviços à famílias carentes. Estas fases da sua vida todos já conhecem.

Não existe nada na vida de Lucia, minha Mãe que não me inspire ternura, carinho e gratidão. Tenho certeza que meus irmãos, Izabel e Luciano, subscrevem este texto.

Costumo dizer que nossas conversas acontecem sempre livres de preconceitos ou moralismos e são impregnadas da modernidade com que conversamos com os mais jovens dos nossos amigos. Ela, sabiamente, acompanhou as mudanças do mundo, as compreende e, principalmente, as aceita. Minha mãe recicla lixo desde que éramos crianças e tem consciência dos seus direitos e deveres de cidadã. Vota com consciência e patriotismo e sempre interfere quando testemunha alguma iniquidade.

Lê jornais, livros de Filosofia, Psicologia, História contemporânea e tudo mais que suas laboriosas mãos conseguem alcançar. Vive conectada com o mundo através de todas as midias que dispõe em sua casa, de onde pouco sai. Embora mantenha uma inquietude quase juvenil, sabe que é chegada a hora de, com meu pai, cuidarem um do outro.

Não por acaso tem amigos de todas as idades e é adorada pelos netos, que a teem como referência marcante. Consultam-na sobre tudo, dos resultados de jogos locais e internacionais de qualquer esporte, até sobre regras gramaticais. Participou das gincanas estudantis aos vestibulares e das formaturas com uma emoção que nos comovia. Carinhosa e cuidadosamente respaldou suas formações intelectuais, enviando-lhes recortes de jornais com textos de relevância, indicando-lhes livros importantes, incentivando-os à pesquisa e revisando trabalhos científicos, entre outros mimos que só às avós é permitido o privilegio.

Não pretendo esgotá-la em tão poucas linhas nem prometo ser modesta. Só verdadeira. Até porque, a verdade, como valor, foi ela e meu pai que me ensinou: ”Filho meu não mente!” Diziam. Meus irmãos também absorveram este princípio e hoje, nós o repassamos para nossos filhos.

Falar na totalidade de quão rara é a personalidade da minha Mãe seria uma tarefa impossível, pois a riqueza da sua vida torna-a, além de um “alguém” que a cada dia que vive acrescenta, e acrescentando torna-se indefinível e inesgotável.

Na vida de Lucia, minha Mãe não há nada que não possamos relembrar sem que nos sintamos engrandecidos por ter sido por ela gerados, o que nos tornam pessoas responsáveis por acatar e respeitar suas singularidades, evidenciadas nas suas maiores virtudes: a humildade, o desapego a tudo que é material e a disponibilidade em ajudar a quem quer que a procure, inclusive e principalmente, sem valorar as justificativas de quem ajuda. Simplesmente acolhe, de forma generosa e incondicional.

Despretensiosa, nunca fez questão de ser reconhecida como uma pessoa bondosa. Mas exige ser lembrada pelo senso de justiça, traço marcante na sua personalidade. Dona de um caráter firme sempre diz o que pensa ainda que incomode ou seja julgada pela sinceridade exacerbada.

Entretanto, a imagem mais amorosa, entre muitas, que tenho de minha Mãe é sutil e singela: Todas as vezes que lhe faço uma visita e despeço-me, descendo as escadas do seu apartamento que ainda chamo “lá em casa”, sentimento de posse de um passado que teima em continuar presente, alcançando o portão da entrada sempre olho para cima e vejo, pela fresta da cortina da sua sala, sempre arrumada com seus objetos de estimação, seu rosto sereno e seu olhar expectante acompanhando meus passos, numa misteriosa mistura de “adeus” e “até breve”, impregnada de um ingênuo sentimento de que me protegerá até que chegue sã e salva, na casa que chamo minha.

Alice Rossini

13 comentários:

Sérgio Gomes disse...

Parabéns pelo aniversário da sua mãe e pela bela homenagem escrita.

Rodrigo (neto) disse...

Mãe,

Confesso que não costumo frequentar muito seu blog, não só por falta de tempo, mas principalmente por questão de prioridade de leitura. Mas não poderia deixar de ler um texto que exaltasse minha avó. Quero deixar registrado o belo texto que você escreveu. Me emocionei muito.

Parabéns!!

Beijos,

Rodrigo

ROSE disse...

Linda e comovente a forma como sua mãe é e voce consegue vê-la. São muito poucos os filhos que têm êste privilégio. No geral a velhice é desassistida e solitária.
Assim, descubro porque voce escreve coisas tão bonitas e que tocam o coração da gente:com amor, cuidado,dedicação e ausência de preconceitos. Vida longa à dona Lucia que consegue ultrapassar os limites das gerações e entender as mudanças do mundo

Aparecida Matos disse...

Alice, antes de mais nada, estou muito feliz por ter voltado a escrever.Parabéns pelo texto e acho que a musa que lhe inspirou, sua mãe, passou para voce todos os princípios que voce deixa transparecer no seu discurso. Me parece uma mulher, cuja modernidade,tantas vezes inexistente entre pessoas bem mais jovens, passou para voce esta franqueza de falar de si e do mundo sem preocupar-se se será unanimidade. Como também não lhe conheço, só atarvés deste blog, reafirmo minha admiração por ser tão atenta ao mundo e tão aberta ás suas mudanças.
Parabéns!

Gloria disse...

Alice. Por favor transmita a sua MÃE OS MEUS VOTOS DE FELICIDADE.
Voce soube descrever muito bem a pessoa maravilhosa que ela é.
Gloria

Lu disse...

Amiga, então foi hoje o tão sonhado aniversário de sua mãe! Que bela homenagem o seu texto, que delicioso presente para ela lê-lo e perceber as cores com que você a vê. Que maravilha essa relação entre vocês, que transcende o tempo. Um verdadeiro privilégio - para as duas.
Dê um grande beijo nela, por mim, que não a conheço - a não ser em ocasiões solenes, mas que já a admiro através dos seus olhos.

Penha disse...

Conheci tão pouco minha mãe. Sempre a tive perto mas, na rebeldia da adolescância distanciamo-nos a ponto de o tempo e a circunstâncias nunca mais nos aproximarem. Já não está entre nós e hoje, procuro nos mesu filhos reaver esta relação que acho fundamental para a estrutura da forma com que nos relacionamos com o mundo e com as pessoas, amando-os ou odiando-os.
Como prefiro a primeira opção, ainda temos uma chance de amar tendo nossos filhos como mestres. Mas sofri muito até chegar à esta compreensão.
Considere-se privilegiada por ter uma mãe especial, carinhosa e acolhedora. A forma com que voce fala dela me emocionou muito.
Parebéns!Ela explica muito do que voce escreve.

AMANDA disse...

Que depoimento lindo! Assim vale à pena viver 200 anos! Hoje é tão dificil uma pessoa de 80 anos ser referência de qualquer coisa que, quem consegue torna todos que o rodeiam também especiais.
Parabéns pela mãe que tem, pois, depois de tudo que passou, tornar-se bondosa e serena é dificil num mundo em que não precisam justificativas para ser ruim.

Marco Rossini disse...

Amor, fazer parte da sua familia me ensinou muitas coisas, pois cada familia tem suas peculiaridades. A sua, que adotei como minha, ensinou-me a não temer a emoção, a ouvir poesias, a chorar quando o momento é para sorrir, até ser piegas, por que não?
Sua mãe é uma mulher especial, atenta ao mundo, conectada com a realidade e, principalmente, às pessoas. Acolhedora, é um exemplo a ser seguido por qualquer pessoa, de todas as idades.Nunca a enxerguei como sogra e seus 80 anos só a modernizaram. Sinto-a como alguem com quem posso contar em qualquer circunstância, uma amiga generosa.
É muito bom tê-la perto e saudável

ZEUS disse...

PARABENS PELA MÃEZONA.MODERNA HA 80ANOS ATRÁS. SÃO MULHERES COMO ESTA E PESSOAS COM ESTA FIBRA QUE CONTRUIRAM ESTE PAÍS.
VIDA LONGA À ELA E À TANTAS QUE AINDA SOFREM E LUTAM PARA SEREM INDEPENDENTES

RICARDO disse...

Alice, para mim, um dos indicadores de amadurecimento e tolerância é a forma como enxergamos as pessoas que foram determinantes em nossas vidas. Sua visão de sua mãe é mais reveladora da sua personalidade e da sua generosidade, do que foi dito sobre ela. Para mim as duas são especiais.
Parebéns, pois são muito poucos os que sabem envelhecer e mais raros ainda os que sabem exergar.

Anônimo disse...

Não conheci minhas avós.O trecho que seu texto em que voce relata como ela se relaciona com os netos, me fez enxergar a lacuna que tenho na vida. Nunca tiva alguem que pairasse sobre a normalidade. Sempre, por questões práticas foram pessoas banais e sem história de vida que servisse de exemplo. Sua homenagem à sua mãe me faz vê-la como alguem privillegiado que ainda deu-se ao luxo de passar o privilégio adiante.
Ainda temos exemplos a serem seguidos. Que ela seja uma centenária, são meus votos!

LAÍS disse...

Menina,

Há quanto tempo eu tô com esse texto impresso na minha mesa pra não deixar de lhe dar os parabéns por tanta verdade nas suas palavras em homenagem à sua mãe. É lindo o carinho e admiração que você passa para sua mãe, que, com certeza, vem deixando sua marca registrada na vida de muita gente. Uma pessoa, que pelo que você descreveu, fez da vida uma prontidão às circunstâncias e fez de limões limonadas...Privilégio de vocês, que podem contar com essa referência de caráter que não abre mão de serenidade e, se não faz questão de reconhecimento, faz por merecer naturalmente todo o reconhecimento de todo mundo.

Que vocês desfrutem muito - e muito bem - dessa companhia. Conscientemente ou não, sua mãe deve pressupor que se viver é difícil - pois a cada minuto surge um fato novo, uma surpresa, um inesperado, que exige correção de rota o tempo todo -, por outro lado, ela também deve achar que vem valendo a pena resistir à inércia e lutar pra fazer de todo dia um dia melhor para os outros.

Um beijo grande