sábado, 15 de setembro de 2012

EDITORIAL

O espaço principal deste Blog está reservado, prioritariamente, a textos em prosa. Entretanto, algumas excessões são feitas em nome da beleza e da originalidade deles. Rafael Neves é nosso colaborador. Abriu mão dos seus afazeres, que não são poucos, para tão pouca idade - 18 anos - e nos presenteia com dois poemas, que, como sempre, guardam a marca da modernidade e do seu enorme talento.



"Plim, plim
Ela entra na minha casa
Ele nem bate na porta
Ela escolhe a marca do meu colchão
Ele diz a cor da geladeira
Ela me veste como bem entende
Ele faz sem lavar as mãos
Ela diz que nela eu posso
Ele tinge o corpo de vermelho
Ela tem o brilho que eu quiser
Ele o volume que eu escolher
Ela preenche a urna para mim
Ele põe lágrimas nos olhos meus

Mas não lhes dou a minha resposta,
estufo a barriga na poltrona
Ambos veem na mesma caixa de papelão
À vista ou eternas vezes sem juros
Ela e Ele
Ele e Ela
Mas Eles
Por que Ele é homem
Boa noite"

"Do tamanho do azul
tartaruguinha
quebra casca
tartaruguinha
respira do ar
tartaruguinha
conhece a luz

Quanto tempo ainda falta
tartaruguinha
quanto ainda lhe resta
Faz do ainda já
E caminha agarrada vida
ao grande azul
que nunca nunca
será maior que ti

tartaruguinha
nada nada tudo
tartarguinha
vai de cima abaixo por cima
Tartaruguinha
a vida te espera"

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

ELLES

Sei que cinema é diversão, entretenimento. Frequento as salas onde são exibidos como todos, com o objetivo de me divertir.

Mas, para um filme preencher minhas expectativas, tem que extrapolar seu caráter lúdico, me inquietar, levar-me a fazer descobertas, derrubar paradigmas, suscitar dúvidas, pois, a arte deve ter o poder não só transformador e libertário como deve ser estopim capaz de fazer eclodir revoluções. Há de nos fazer enxergar o reflexo de uma cultura, de uma geração. Ver nele desenhados nossos medos, a vergonha das nossas covardias e omissões e, com despudorada ousadia, nossas transgressões.

Enxergar o mundo róseo pode servir até como um recreio para os dias de chumbo que atravessamos. Enquanto o enxergamos nos iludindo, lá fora, a realidade nos espreita.

Pois bem, fui assistir ao filme “ELLES”. Produção francesa. Juliette Binoche no papel principal. O filme fala do cotidiano de uma família classe media marido, dois filhos e uma mulher que, além de cumprir todas as tarefas domésticas, ainda era jornalista. Naquele momento escrevia artigos para uma revista incansável em cobrar prazos, sobre um tema inusitado: a vida das prostitutas. No caso, jovens adolescentes, sem a menor noção dos riscos que corriam e que, segundo elas, atendiam a homens casados, presos a relações entediantes.

No desenrolar do filme vai caindo, diante de Anne, o véu que cobria suas insatisfações. O marido que não valorizava seu trabalho doméstico e intelectual, nem seu desempenho materno. Não enxergava sua insatisfação sexual.

Através daquelas meninas que se vendiam por dinheiro reviu e reconheceu os anseios do seu corpo que eram aplacados através da monotonia imposta pela relação que mantinha com o marido estereotipado, como os caçadores de ninfetas que pesquisava.

A compreensão atingiu seu auge quando, num jantar de negócios, ela olha ao redor da mesa, e “vê” todos os parceiros de suas entrevistadas olhando-a com olhos gulosos e sensuais, enquanto o marido, a despeito da sua presença à mesa, levanta-se e serve o vinho à outra mulher, sentada do outro lado.

Ela sai. O simbolismo da e sua saída representa uma viagem onde percorre tanto sua miséria quanto tudo de valoroso que preenchia sua vida, marido, trabalho, filhos e o quanto estava vinculada a tudo isto. Retorna e reencontra seu casamento e, já no café da manhã, todos que amava reunidos, numa cena comum em qualquer parte do mundo.

É por isto que o filme me inquieta. Ele é despretensioso. Não pretende entrar nos mistérios da mente humana nem mostra comportamentos sociopatas. Nada de anormal, nada que não conheçamos ou não tenhamos vivido. Mostra-nos como somos. Às vezes tolos, outras descuidados com quem está mais próximo, outras distraídos quanto as necessidades dos que amamos ou de nós mesmos, outras amorosos, outras cruéis mas, na maioria as vezes, indiferentes.

Como estamos comemorando o aniversario de Nelson Rodrigues, olhamos no “espelho” a que chamamos de tela e vemos refletida "a vida como ela é".

ALICE ROSSINI