segunda-feira, 3 de setembro de 2012

ELLES

Sei que cinema é diversão, entretenimento. Frequento as salas onde são exibidos como todos, com o objetivo de me divertir.

Mas, para um filme preencher minhas expectativas, tem que extrapolar seu caráter lúdico, me inquietar, levar-me a fazer descobertas, derrubar paradigmas, suscitar dúvidas, pois, a arte deve ter o poder não só transformador e libertário como deve ser estopim capaz de fazer eclodir revoluções. Há de nos fazer enxergar o reflexo de uma cultura, de uma geração. Ver nele desenhados nossos medos, a vergonha das nossas covardias e omissões e, com despudorada ousadia, nossas transgressões.

Enxergar o mundo róseo pode servir até como um recreio para os dias de chumbo que atravessamos. Enquanto o enxergamos nos iludindo, lá fora, a realidade nos espreita.

Pois bem, fui assistir ao filme “ELLES”. Produção francesa. Juliette Binoche no papel principal. O filme fala do cotidiano de uma família classe media marido, dois filhos e uma mulher que, além de cumprir todas as tarefas domésticas, ainda era jornalista. Naquele momento escrevia artigos para uma revista incansável em cobrar prazos, sobre um tema inusitado: a vida das prostitutas. No caso, jovens adolescentes, sem a menor noção dos riscos que corriam e que, segundo elas, atendiam a homens casados, presos a relações entediantes.

No desenrolar do filme vai caindo, diante de Anne, o véu que cobria suas insatisfações. O marido que não valorizava seu trabalho doméstico e intelectual, nem seu desempenho materno. Não enxergava sua insatisfação sexual.

Através daquelas meninas que se vendiam por dinheiro reviu e reconheceu os anseios do seu corpo que eram aplacados através da monotonia imposta pela relação que mantinha com o marido estereotipado, como os caçadores de ninfetas que pesquisava.

A compreensão atingiu seu auge quando, num jantar de negócios, ela olha ao redor da mesa, e “vê” todos os parceiros de suas entrevistadas olhando-a com olhos gulosos e sensuais, enquanto o marido, a despeito da sua presença à mesa, levanta-se e serve o vinho à outra mulher, sentada do outro lado.

Ela sai. O simbolismo da e sua saída representa uma viagem onde percorre tanto sua miséria quanto tudo de valoroso que preenchia sua vida, marido, trabalho, filhos e o quanto estava vinculada a tudo isto. Retorna e reencontra seu casamento e, já no café da manhã, todos que amava reunidos, numa cena comum em qualquer parte do mundo.

É por isto que o filme me inquieta. Ele é despretensioso. Não pretende entrar nos mistérios da mente humana nem mostra comportamentos sociopatas. Nada de anormal, nada que não conheçamos ou não tenhamos vivido. Mostra-nos como somos. Às vezes tolos, outras descuidados com quem está mais próximo, outras distraídos quanto as necessidades dos que amamos ou de nós mesmos, outras amorosos, outras cruéis mas, na maioria as vezes, indiferentes.

Como estamos comemorando o aniversario de Nelson Rodrigues, olhamos no “espelho” a que chamamos de tela e vemos refletida "a vida como ela é".

ALICE ROSSINI

9 comentários:

Aparecida Matos disse...

Não assisti ao filme, pouco sei sobre seu enredo, exceto os detalhes que voce descreve. O que me impressiona é o poder de comentar uma obra de arte, sem valorá-la, mas insistindo na sua importância. É assim que devemos enxergar a arte, como meio e fim que se completam

Lu disse...

AINDA não assisti o filme, mas confesso que me deu muita vontade ao ler seu texto, não para identificar cenas do cotidiano, mas para adentrar nessa "viagem" interior rumo a nós mesmos - que poucos, aliás, tem coragem de fazer, assim como você!
Amiga, seus textos são sempre o máximo!! E nesse caso, correndo o risco de me precipitar ante meu desconhecimento da obra, me parece melhor que o próprio filme!

Vera Lucia Alves Batista disse...

Oi Alice,
Muito bons os seus artigos. Abraços, Vera

Penha Castro disse...

Uma amiga viu o filme que voce comenta e nossa conversa sobre ele não passou pelos aspectos que voce abordou. Me pareceu que voce captou as sutilezas da película, o que não invalidam as análises da minha amiga. Como acho voce muito atenta ao cotidiano, acho que suas observações complementam, brilhantemente, os comentários que me foram feitos e, sem assistir à obra, fazer um juízo sobre ela.

AMANDA disse...

Difícil falar de um filme apenas comentando-o com isenção. Em geral, julgamos, projetamos nossos valores.
Voce fez uma descrição isenta, mas que nos põe à par da sua proposta

RICARDO disse...

NÃO ASSISTI O FILME MAS,APLAUDO A SUA VOLTA AO BLOG. ESTOU FAZENDO UM PROTESTO, VOCE ESTÁ ESCREVENDO POUCO!!!

ROSE disse...

Infelizmente não assisti o filme que voce tão bem descreve. Ler voce é delicioso e sempre nos leva a pensar, independente de termos ou não conhecimento do que está em questão. Esta qualidade de poucos voce domina com leveza e profundidade.

Anônimo disse...

Voce não me conhece. Sou amiga de uma conhecida sua. Por isto tenho a coragem de dizer que assisti ao filme e achei bobo. Mas, olhando-o pela sua ótica, vejo-o de outra maneira. Não precisa ser sofisticado para falar de coisa séria. E o filme aborda a coisa mais séria do mundo que é a forma como a gente encara a vida. Ela acontece simples porque é simples. Todos nós podemos viver situações como aquelas e reagir daquela forma.

ZEUS disse...

Vou lhe dar uma sugestão: voce vai ao cinema e depois nos diz se vale á pena...(risos)

Estou brincando! Mesmo não ter assistido ao filme, seu texto está otimo. Parabéns