sábado, 10 de dezembro de 2011

ENLAMAÇADA

Meu corpo tombou de vez naquela noite chuvosa. Cai com tudo na lama, agora ainda mais nojenta. Não ousei levantar, talvez por estar cansada depois do dia de sofrimentos, mas, principalmente, por compreender que ali era o meu lugar. Encharcada pela água que Deus não quer mais e coberta pela lama que as minhocas defecaram. Nada continha minhas lágrimas, que se misturavam àquele conjunto de resíduos que o mundo descartou e chamou de chão.

Eu era fraca. Fraca, mentirosa e vagabunda. Sabia disso, admitia com a mesma facilidade que uma criança se encanta por um brinquedo novo. Mas isso não diminuía a dor de ver tantos outros me exporem de tal forma. Mas será que eu merecia tanto egoísmo? Será que alguém como eu podia não querer que outros me xingassem e privar os maldizeres apenas para mim? Seria pedir demais um mínimo de privacidade? Meu corpo era público, minha dor era pública, será que um lixo como eu merecia o luxo do anonimato?

A vergonha me lascava a garganta. Fazia arder feito fogo o canal por onde gostaria de expressar ao mundo o que sinto. Que inveja tenho daqueles que tem a garganta livre. Que inveja tenho dos que podem gritar ao vento o pranto de seus corações, a alegria de suas almas...Sem que seja amordaçadas por tal gesto. Que inveja de quem consegue abrir a boca sem comer lama.

Nojo. Que nojo tenho de mim por tanta inveja.
Mas encontro na inveja um refúgio. Uma forma irreal de fugir para onde sempre quis estar... Para onde o mundo me disse “não” antes mesmo de eu conseguir perguntar. Que culpa tenho se já me foi negado tudo antes que eu aprendesse a falar? Como podem dizer “não” a quem não faz idéia de como formular uma pergunta?

Invejo. Invejo com todo o orgulho, ou, pelo menos, com o restinho que me deixaram nutrir. Invejo aqueles que tiveram a sorte que me foi expropriada.

Deixo germinar em meu peito. Sei que é uma droga, sei que me trará desgraça a longo prazo. Mas que mais posso fazer? O que é um pingo para quem se encontra enlamaçada?

Me fazia bem para a alma ter essa vaidade. Me sentia igual à tantas outras hipócritas...

Ô vidinha miserável... É tão fácil colocar a culpa em você, mas me dizem que a vida sou eu quem faço. Que a vida não é um garoto piolhento que fica cutucando a gente com um graveto ou pondo uma lupa sob um formiga em dia de sol. Que se existe esse garoto, fui eu que o crei. Mas que outro destino a vida me ofertou além de um errante rumo por entre desilusões?

A vida sou em quem faço? Provavelmente quem escreveu tamanha besteira estava numa poltrona macia. Deliciando-se com uma refeição fina, desfrutando do conforto de um lar. Nunca me foi dada a opção de viver com queria. Simplesmente me cuspiram nesse mundo sem um tostão no bolso (quem me dera possuir uma roupa para ter um bolso) e ainda me dizem “se vive assim, a culpa é sua”. Depois de ouvir essa, não dá para suportar.

Se vive assim, a culpa é sua... O ódio me sobe à garganta com uma velocidade imensurável, desgovernado, sem nada que pareça ser capaz de interromper tal ira. Mas, sim, existe. A raiva é acorrentada em minha língua. Incapaz de ver a luz do dia. Nem o luxo da expressão me foi dado. Democracia tola.

A chuva voltou a cair. Mais forte do que nunca. Cada gota era como uma bala metralhando o meu corpo. Cada gota era um pecado... um crime. Um crime que me parecia perfeito. Cada gota abria um buraco em minha pele. Fazia expor a carne viva, assim como meus pecados. A essa hora, eu era uma massa disforme de lama, gravetos e folhas. A pele descascava, o sangue escorria, os ossos à mostra... Mas que mal fariam mais algumas gotas de chuva para quem já estava encharcada.

RAFAEL NEVES – ESTUDANTE 17 ANOS

8 comentários:

Alice Rossini disse...

Rafa,a cada texto seu fica mais difícil pra mim, não só comentá-los como escrever os meus.

Seu talento, sua criatividade, sua maturidade como escritor me ensina o que é ser, REALMENTE, um escritor. Voce não só escreve bem, como seus textos vão além de palavras bem colocadas. Dizem alguma coisa para quem os lê, rechaçando a obviedade, pecado mortal de alguns "escritores". Como se as palavras fossem meros instrumentos que voce usa, para dizer coisas importantes ao seu mundo. Dizer das suas inquetações, das suas angústias,das suas alegrias tão maduras, quanto ingênuas, porque verdadeiras e humanas.

O ser humano quando se expõe é ingênuo, transparente e belo. Sua humanidade "vaza" de várias formas, no seu caso,através das palavras combinadas com a coragem dos verdadeiros escritores.

Voce é ainda tão jovem, tem tanto por viver que não posso inferir qual profissão voce exercerá quando a escolha se fizer necessária. Só sei que tem inteligência e talento para ser tudo que quiser e também, um grande escritor.

Beijos carinhosos e parabéns, mais uma vez

NETO disse...

A democracia, quando vilipendiada e cerceada por qualquer sistema ditatorial, também, assim se sente.

Penha Castro disse...

RAFAEL,

Li e reli seu texto e à cada vez que o lia um um novo sentimento experiementava. Não consigo abstrair que foi escrito por um adolescente de 17 anos. Fico me perguntando,quais experiências levaram voce a concebê-lo ou se sua criatividade e talento o criaram na sua mente e da mente para o papel.

Impressionantes as duas possibilidades. O texto causa impacto, surpresa e emoção à quem o lê.

Parabéns!

RICARDO disse...

EU TAMBÉM LI E RELI E CONFESSO QUE FIQUEI CHOCADO QUANDO VI A IDADE DO ESCRITOR, ALIÁS, COM VARIAS CRÔNICAS NESTE BLOG.
RAPAZ! PESADO SEU TEXTO! MAS MUITO BEM ESCRITO.NUNCA IMAGINEI QUE UM ADOLESCENTE ESCREVESSE ALGO ASSIM, AINDA ESTOU ATÔNITO.

Aparecida Matos disse...

Rafael, este texto é muito dificil de digerir. Pelo menos foi o que senti. Principalmente quando sabemos que foi escrito por um jovem de 17 anos. Mas leia isto como um elogio. Voce amadureceu muito rápido. Porque entendo que este texto foi fruto da sua criatividade mas, lendo os outros, tem muito de voce. Para quem lê é bom mas, para voce que escreve e sente, acho que sofre durante o processo. São os osssos do ofício.
Parabéns e continue escevendo.

Anônimo disse...

Crônica pesada, Rafael. Tive que ler duas vezes para entendê-la. Mas acheia-a bem escrita e criativa.
Parabéns

Ricardo Barreto disse...

Rafa, seu texto só me causa uma profunda alegria...alegria desconcertante e calada...é muito bom ver que tem gente aí e saber que você é ultrapassado pela vida, tornand0-se seu porta-voz ou seja lá o que for...não interessa também...sou seu fã incondicional!
Abraço grande!

GLORIA disse...

RAFA. CADA DIA LHE ADMIRO MAIS.SEUS ESCRITOS SAO MARAVILHOSOS.
SO TENHO PARA VOCE PALAVRAS QUE LHE INCENTIVO A CONTINUAR ESCREVENDO.
SUA FÃ NUMERO UM.
BEIJOS.
GLORIA