quarta-feira, 3 de março de 2010

O MAL E O BEM DE BEETHOVEN

Com 56 anos de idade, no ano de 1827, num dia de intenso e espetacular temporal, com estrondos dignos da sua sinfonia Heróica, morria o mais genial compositor de todos os tempos, Ludwig Van Beethoven, nascido na Alemanha, mas vivendo quase toda a sua vida na musical Viena.

Sempre que escuto esse gênio da música – agora, enquanto escrevo, ouço a Sonata n. 8 - não consigo deixar de relacionar a bela sonoridade da sua música à surdez progressiva que o acometeu a partir dos 25 anos. Da mesma forma como muito outros pensam.

Certamente Beethoven nunca ouviu muito bem desde a infância, embora nada seja conclusivo sobre a doença desse extraordinário músico e compositor.

Exames químicos realizados em mechas dos seus cabelos colhidos por admiradores antes do enterro, e até a exumação dos seus restos mortais não foram conclusivos em relação à acentuada presença de chumbo no seu organismo. Os vestígios da substância seriam a evidência de um possível envenenamento por tratamentos médicos equivocados...

Uma das características da música de Beethoven é a alternância de momentos em que a composição musical desce a acordes muito baixos, quase inaudíveis, com a conseqüente elevação e vigor musical, o que confere às suas criações uma sonoridade melodiosa única. A música se intercala em quase silêncios, quando depois os graves, quase dramáticos, reverberam...

Se ele, por muito tempo, ouvia os sons do mundo assim, ora altos, ora baixos, intermitentes, essa patologia teria, obviamente, que refletir-se na sua maneira de criar... e de se comportar.

Durante muito tempo Beethoven sofreu calado com o problema, amargurado e acusando a Deus por tê-lo castigado com a falha naquele que é o mais importante sentido para um músico, a audição. No seu testamento expõe a angústia que sofria quando alguém falava, na sua presença, do som de um flauta distante que não conseguia ouvir...

Quem sabe o criador, que ele às vezes amaldiçoava, soubesse o que estava fazendo ao negar-lhe o sentido pleno da audição. Em função da deficiência, Beethoven isolou-se num subúrbio de Viena, afastou-se dos recitais – exímio pianista que era- e de encontros freqüentes com outros compositores da época, e com a própria corte, dificultando a absorção de influências ou modismos.

Na última fase da sua extensa criação dizia que revolucionaria a música, como o fez. Depois de Beethoven a música não foi mais a mesma. Fez mesmo uma revolução, como prometia.
O fato é que Beethoven nunca perdeu inteiramente a audição. Alguma coisa ele sempre ouvia, mesmo nos momentos em que a doença acentuava-se. Compunha mais exercitando a elaboração no cérebro, criando e imaginando os acordes, do que ouvindo os sons que imaginara.

Místico, muitas vezes achava que mantinha uma relação direta com Deus e considerava os músicos como os seres que estariam mais próximos do criador.

A música era tudo para ele, mas gostava também de farras, mulheres e botecos, como qualquer mortal.

De inteligência mordaz, às vezes feria as pessoas com as suas palavras, mas, embora reconhecido e enaltecido em vida como talvez nenhum músico da época fora, sabia ser generoso e capaz de pedir desculpas no dia seguinte, quando exagerava.

Ao ouvir Beethoven, talvez tenhamos de concluir que realmente há males que vêm para o bem. Talvez a sua genialidade não aflorasse tanto, não fosse aquela provação física de um sentido fundamental à espécie humana que o acometeu.

Em março, agora, completar-se-á 183 anos da morte desse gênio indomável da música, de quem Mozart dizia:

- Não o percam de vista, um dia há-de dar o que falar!
E como deu.


SÉRGIO GOMES é jornalista


8 comentários:

Alice Rossini disse...

Sérgio,o mergulho no universo psicológico do BEETHOVEN ou quem sabe, uma "audição" mais atenta da sua obra associando-a à surdez que o "vitimou", lhe levou à
dicotomia entre o Bem e o Mal. O que consumiu o gênio durante toda sua vida, não afetou sua criatividade e emprestou à sua obra o estilo que a tornou eterna.

Seu raciocínio pode nos levar para o meandros da vida e concluírmos que nada sabemos nem nos cabe dizer o que é Bom ou Ruim, Certo e Errado pois uma coisa é condição para outra.

Sendo mais prosaica, como saberemos que amanheceu se não atravessarmos a escuridão da noite?

Lindo texto, carregado de sentidos e instiga reflexões.
Confesso que fiquei algum tempo olhando feito boba para a tela, sem saber por onde começar meu comentário.

Parabens e obrigada pela colaboração

Fernando Trovador disse...

A rebeldia, a irreverência, a simplicidade, a arrogância, a vaidade, etc, são caracteristicas que frequentemente definem, uma ou todas, os grandes génios em todos os campos das artes ou das ciencias. Sérgio óbviamente, fala com paixão de conheçedor de um dos maiores génios da música clássica. Um Homem que mesmo privado do sentido mais importante para um músico, a audição, até hoje encanta e impressiona os amantes da musica.
Muito bom o seu texto, bem colocado e fluido. Alem de tudo, é oportuníssimo enaltecer o talento e a criação de artistas inesquecíveis, ja que, nos dias de hoje, o mundo atravessa uma crise bravíssima de falta de talento e poder criação.

Parabens Sergio, e obrigado pelo lembrete!

Penha Castro disse...

Oportuno seu texto que homenageia o gênio de Beethoven.

Deixar que uma "incapacidade" esmague seu talento é, no mínimo, falta de coragem, persistência e falta de criatividade. Existem artistas que pintam com os pés,velhos analfabetos que alfabetizam-se quando a leitura fará muito pouco pelo seu prazer. As para-olimpiadas são comoventes exemplos de superação.

A depender da personalidade de cada um a vontade fala mais alto e no caso de Beethoven, para deleite da humanidade, o talento. Não so venceu como marcou sua obra.

Vitória Régia disse...

Depois que li o texto pude entender um pouco mais as musicas de Beethoven que sempre me impressionaram. E entendo pude sentí-la

Obrigada!

Amanda disse...

Adorei o texto. Nunca tinha ouvido Beethoven e associado "aqueles altos e baixos" que acho maravilhosos à sua suposta "deficiência". O título traduz muito bem o que o Bem e o Mal podem fazer para quem não desiste.

Por estas e outras descobertas que este Blog me encanta!

Aparecida Matos disse...

Sergio voce é um excelente jornalista, li seu texto ontem à noite quando cheguei do cinema. Fluiu fácil, leitura agradável.

Hoje, como tenho alguns CD'S de Beethoven, fui, confesso, comprovar sua análise da obra dele. É isso mesmo, tem horas que voce acha que a música acabou e, na dúvida, aumenta o som. De repente uma eplosão de acordes e, com sua ajuda, ratificamos que o etilo dele é este. Como sei que era surdo, fiz uma conexão baseada no seu texto e ficou fácil entendê-lo

Vivendo e aprendendo. Adoro este blog, depois que o descobri, ja falei, me viciei nele(risos)

Parabéns!

Ricardo Farias disse...

Sérgio achei seu texto ótimo! Voce conseguiu justificar a sabedoria da vida em Beethoven. Todas as pessoas tem um talento que não precisa ser de gênio mas, todas podem ter forças para superar as adversidades da vida. Dizem que os artistas produzem quando sofrem.
Concluindo, não existe BEM sem MAL

IZABEL disse...

Sergio,
Que linda homenagem a um dos gênios da música clássica - Ludwig Van Beethoven.

Nós seres humanos,quando perdemos um dos nossos cinco sentidos, acionamos e ampliamos os “sentidos remanescentes”. Beethoven, além de acionar estes sentidos, pela surdez, ele usou um “sexto sentido” (vou me permitir viajar) – Ele buscou ouvir os sons “inaudíveis”... Mergulhou no SELF (arquétipo da TOTALIDADE – centro regulador da psique; poder transpessoal que transcende o ego – E como todo arquétipo, a natureza do self é incognoscível, mas suas manifestações são o conteúdo de mitos e lendas. E graças a este mergulho, hoje temos as mais belas sinfonias... As mais belas melodias...

Como já escrevi uma vez: VERSO&REVERSO está fazendo a diferença neste “universo virtual”.

Obrigada... Parabéns!!

Um abraço,
Izabel