terça-feira, 12 de janeiro de 2010

QUAL A ÉTICA DO DESEJO?

A arte de boa qualidade – no caso específico me refiro ao cinema e à literatura - pode ser revisitada quantas vezes quisermos. Sempre existirá algum novo aspecto que nosso grau de maturidade ou de perspicácia deverá descobrir. Aí reside a magia e o infinito dos limites da percepção humana

Noite destas, fui recompensada pela insônia assistindo, pela terceira vez CLOSER (Perto demais). O filme, como é sabido, conta a história de dois casais que vivem situações de atração, amor, traição, lealdade, mágoas e tudo que os acompanha.

Coincidentemente, comecei a ler o livro Amar e Trair, cujo autor Aldo Carotenuto pergunta: “Podemos não nos trair e não trair”? O autor, um dos maiores representantes do pensamento de Jung, mergulha sobre o delicado tema - traição - abordando aspectos desconcertantes, para nós leigos, condicionados a conceitos estreitos de fidelidade e lealdade.

A Bíblia está recheada de situações que podem ser caracterizadas como traição. Simbolicamente, quando Adão aceita de Eva o “fruto proibido”, juntos traem o “Criador”. Quando Judas entrega Jesus aos seus algozes e Pedro nega-o três vezes, o traem! Judas até os dias de hoje é demonizado. A covardia de Pedro foi premiada com a chave que lançou a pedra fundamental da Igreja Católica.

Em minha opinião, todos dois traíram. Embora, em relação a Judas já exista uma versão que sua “traição” fazia parte dos planos de Cristo que, na hora da morte pergunta ao Pai: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”. Nestas últimas e trágicas palavras da vida terrena de Jesus, Jung viu um sinal de um malogro radical.

Não vou entrar neste mérito por absoluta ignorância. A lição que tiro desta história é que nem tudo é o que parece.
.
Freud já se referiu à “sensação oceânica” experimentada pelo feto no ventre materno que leva minha condição de leiga a reconhecer o nascimento como uma situação traumática, causada pela interrupção da simbiose mãe-filho. A criança acolhida no útero materno “acha” aquela condição eterna. Quando a natureza a expulsa para a vida a sensação de desamparo da criança e de abandono da mãe têm repercussões nos seus imaginários, cujos conteúdos são de uma traição.

Posto isto, vemos que os fundamentos da traição têm raízes atávicas.

Existem situações, que todos enfrentam, em que nossa lealdade em relação a quem amamos, sejam parceiros, pais, irmãos e amigos são colocadas em xeque. Com relação aos irmãos, pais e amigos a manutenção do princípio é mais fácil. Se os amamos dificilmente seremos desleais a este amor, salvo deslizes de caráter, o que não transforma ninguém em Caim ou Judas, já que somos falíveis.

Quando o conceito é relativo ao relacionamento entre homens e mulheres, outros aspectos têm que ser considerados. Dificilmente alguém preenche todas as expectativas de outro alguém. Alguns vácuos acontecem, principalmente quando o estado de paixão acaba. Estamos em constante transformação. Amadurecemos, modificamos nossas prioridades, nossa visão de mundo, nosso sentir e com ele nosso agir. E cada um de nós modifica-se à sua maneira, no seu ritmo e em várias direções.

Vivemos num mundo com, aproximadamente, sete bilhões de pessoas. Muitos são os encontros e, em cada um deles, uma enorme dose de sentimentos inesperados estão presentes. Existem características, virtudes, defeitos, jeitos de pensar, falar, olhar, que podem ser devastadores para quem os experimenta, ainda que por uma questão de segundos. Uma carência aqui, uma fantasia ali, uma fraqueza acolá, aventuras, encontros e contatos com desfechos imprevisíveis podem surpreender qualquer de nós. O filme CLOSER mostra isto claramente. Todos os encontros foram casuais e definitivos. Todos os desencontros provocados por traições, deslealdades que provocaram raiva e dor.

A inquietação evidente em homens e as repressões que a maioria das mulheres submete-se para que o mundo, pelo menos o Ocidental, seja monogâmico e todos preservem suas zonas de conforto, nos levam a crer que o homem, um animal que só diferencia-se dos outros pelo raciocínio, não possui a monogamia impressa nos seus genes. O costume de ter um só parceiro é, obviamente, meramente cultural. O homem precisa ter certeza que é para sua prole que toda sua força de trabalho e a riqueza gerada por ela estão sendo direcionadas. O Estado precisa de familias estruturadas que lhes sirvam de base e as Igrejas, entre elas a Católica, através dos seus dogmas e princípios assentados na culpa acabam por imprimir um costume que atravessa séculos.

Quem nunca tiver olhado para alguém e desejado ficar ao seu lado, sentir desejo de tocar-lhe, ter fantasiado situações eróticas ou românticas, que atire a primeira pedra. Façamos um exame de consciência rigoroso, liberto de medos, culpas, condicionamentos, moralismos, permitindo-nos ser gente com desejos, fantasias, vontade e vamos perceber quantas vezes na vida tivemos que abrir mão, certo ou erradamente, de momentos de felicidade e de verdade.

Quando abdicamos de sermos levados por algum impulso, seja ele, culturalmente lícito ou ilícito, somos sim leais e honestos com nossos parceiros, se este for o pacto acertado e aceito entre os dois. Mas, ao nos pouparmos o direito de vivermos nossos impulsos, sejam eles de que natureza for, abortando encontros que podem ser definitivos, mágicos ou fugazes estaremos sendo desleais e infiéis conosco?

E aí, como resolveremos este impasse? Porque infidelidade e a deslealdade doem. Estimulam a insegurança, fazem o ferido experimentar um sentimento horrível de exclusão e o algoz a terrível sensação de não ter honrado um compromisso feito de forma livre e consciente.

Mas também, pode sim, fortalecer relações, começando pela sua com voce mesmo. Diagnostica seus limites e por que os ultrapassou. Sabendo de si é mais fácil e menos penoso o enfrentamento com o parceiro e com o modelo pactuado da relação. Ainda é válido? Suportaremos uma mudança? Se for mantido, teremos condição de mantê-lo?

É possível haver vida depois de uma traição. Vida real, sofrida, mas que permite enxergar a humanidade do outro e aceitá-lo não mais como um ser idealizado, mas como alguém real, capaz de assumir erros e por isso mais digno e mais humano. Ou, como aconteceu no filme CLOSER, um dos casais não suporta a pressão e separa-se enquanto o outro sai por aí, tentando cicatrizar feridas.

Bem mais próximo da nossa realidade.


ALICE ROSSINI

11 comentários:

Penha Castro disse...

Alguma ética o desejo tem. Acho contraditório esta minha afirmação porque o desejo surge independente da nossa vontade. E é neste ponto que vou falar do seu texto.

Corajoso, bem feito e bem fundamentado. A cultura engessa o que temos, talvez, de mais puro e inocente em nós, que é desejar sem limitações. Entendo também, o papel da cltura na "arrumação" disso, pois, por termos raciocínio temos emoções e a etica que voce pergunta se existe.

O desejo é um direito inalienável e individual a ética em relação ao outro uma obrigação e um trato que se distratado deve ser conversado.

Mas acredito que muitas relações sobrevivam à traições. O que pode matá-las é se a deslealdade perdurar.

Gostei, chutou o pau da barraca e foi incômoda. Isto é bom numa escritora. Parabens.

Vitória Régia disse...

Adorei o tema e a forma como foi tratado. Sem preconceitos e sem moralismos. Todos somos passiveis de erros e estamos sujeitos a tentações. Não falo so de homens e mulheres, sei que são um caso a parte. Mas, lealdade, cada dia mais escassa e mais difícil de se encontrar, talvez, a falta dela, seja o mais humano dos sentimentos.

Reconhecer isto é um ato de coragem. Já estava na hora de uma abordagem mais ousada e verdadeira sobre o tema.

Ricardo Farias disse...

GOSTEI. FEZ UMA ANÁLISE NEUTRA, IGUALANDO HOMENS E MULHERES. DESEJAR, QUERER, FANTASIAR, TRAIR E SER TRAIDO, SER LEAL E HONESTO É UMA CONDIÇÃO HUMANA. PRECISA DE CORAGEM PARA SER VISTA COMO TAL.

OUSADA MAS, SERIA E PROFUNDA SUA CRÔNICA. PARABÉNS.

Marco Rossini disse...

pois é. o tema é quente e palpitante. o desejo é um sentimento inerente ao ser humano. ou melhor, aos animais. acho que a paixão em seu estado maior, serve para filtrar os desejos de trair. na traição não existe ética. por isto é traição. o desejo consentido elimina a traição. mas o desejo consentido é uma arma que poucos relacionamentos se dão ao luxo de exercitar. só os sólidos, maduros e verdadeiros rsistem a sua colocação em prática.

José Neto disse...

Como sempre vc escreve bem, porém, neste texto sinto uma superação. PARABÉNS,

Neto

Anônimo disse...

Falou e disse. Imagino o quanto esta crônica deve ter atingido muitos alvos. Voce teve a coragem de abordar um tema que é um tabu, pois ninguem quer para si, da forma elegante e bonita que so voce sabe fazer.PARABÉNS

Mariana disse...

Puxa! Começou o ano bem! É isso aí. Enfrentar a vida de frente, com suas graças e desgraças. Só assim podemos amadurecer e entender melhor como ela funciona

Adorei o tema!

Anônimo disse...

Alice - fiquei encantada com seu estilo neste texto, além de ter sido feliz na escolha do tema, que considero essencial discutir, pensar e amadurecer, você pontuou ângulos e situações que nos familizarizam com a questão do respeito aos nossos próprios desejos, que tantas vezes nos escapam. Sinto bem fundo tudo isso e sei que no futuro mudaremos nossa reação. "O seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar" Luciana Caribé Marques

IZABEL disse...

Alice,
Verso e Reverso está cumprindo o seu objetivo. Os textos brilhantes que tenho lido e me deliciado, tem sido de grande aprendizado... Eles têm sido um “disparador” para muito mais... Pois os comentários são tão enriquecedores quanto os próprios textos. Percebo as diversas formas que estão “tocando” os leitores - Concordo / discordo... Penso / repenso... Construo / desconstruo... Enfim é um “espaço” de reflexão.

O desejo é uma tensão em direção a um objetivo – é a fonte de uma satisfação! Estudos concluem que o desejo é um sentimento. Eu particularmente prefiro classificá-lo como uma “pré-emoção”... Pois as vezes o desejo tem a sua nascente em fontes “primárias”, só adquirindo forma quando trazido ao consciente - enfrentado e lidado como uma “atitude mental”.

Como o desejo é orientado pelas “idéias”, “conteúdos”, que foram transmitidos e orientados pela sociedade e pela cultura que estamos inseridos, ele necessita de aprovação, daí a necessidade em estarmos contextualizados com o “pensamento coletivo”.

Beijos,

Bel

Lourdinha disse...

Pela sua competência literária, não me surpreende a clareza e elegância do seu texto, mesmo em se tratando de um tema polêmico. Tenho certeza de que qualquer mortal que o tenha lido se enquadrou em uma das situações, sentimentos ou circunstâncias nele descritos, e se viu revivendo algum momento "incômodo" que já tenha experimentado vida afora, mesmo que dentro de si mesmo.

Aliás, nossos sentimentos e visões de gente e de mundo mais uma vez convergem, e me orgulho cada vez mais pelo privilégio de ter uma mente criativa e bem elaborada como a sua me acompanhando nos meandros da nossa amizade.

O desejo não tem ética, muito menos a traição. São impulsos individuais, sobrepostos quando há mais de uma pessoa envolvida, onde há mais do que a vontade de um a ser satisfeita, onde há mais do que instinto, do que desejo: há sentimento. O importante é o compromisso em não magoar a quem amamos - esse sim rompido pelo "ato" que consideramos deslealdade, e que fere mais do que a infidelidade em si. Não importa o quão duro é o grilhão que nos impomos para nos mantermos "fiéis" ao outro, por mais que seja herança cultural esse é o cerne da ética do comportamento humano, em contraponto à sua natureza arrogante, individualista e eternamente insatisfeita.

Cabe aqui a pergunta: por que os homens, seres providos de raciocínio e consciência de si mesmos, criaram e se impõem regras tão difíceis de cumprir, e as desafiam desde o início dos tempos buscando um par que os acompanhe pela vida? Ninguem se casa de olho numa separação. Talvez fosse mais "ético" assumirmos verdades incômodas, que afetam nossa zona de conforto: é difícil dizer ao outro que já não o queremos, que preferimos estar com outra pessoa (ou até mesmo sós), que não estamos mais dispostos a assumir determinadas regras por conta desse relacionamento.

Mas concordo que tudo isso faz parte de um processo imposto culturalmente. Para acharmos - e agirmos - diferentemente do que nos foi ensinado, precisaríamos retornar às nossas origens e viver como os bichos, para os quais os relacionamentos "interpessoais" resumem-se às leis da sobrevivência e à procriação, como forma de perpetuação da espécie. O amor é secundário, a eleição do parceiro é meramente fisiológica, vale a lei do mais forte e melhor reprodutor.

Voltaríamos, então, ao início dos tempos. Resta saber o que faríamos com a capacidade de pensar - e consequentemente sentir - com que fomos agraciados.

Ana Clara disse...

Eu assino embaixo de seu texto! Concordo com seu ponto de vista, e acho maravilhosa a forma com que o tema foi abordado.

Você, sempre escrevendo textos interessantes, que a gente fica com "fome", sem querer que termine mas querendo ler sempre mais. E com temas pertinentes. Esse, aliás, é um tanto ignorado pela sociedade, que prefere fechar os olhos e seguir, cegamente, a ética religiosa, estatal e um tal de bom senso.
É mais fácil seguir a maré. Mas e aproveitá-la? E questionar porque ela tá indo pra esse lado? São poucos que o fazem.
Continue questionando, aproveitando, escrevendo e cutucando. Incomodando. E acrescentando muito, sempre...
Sem mais! rs

Beijos,

Ninha