domingo, 17 de janeiro de 2010

TARJA PRETA

Tive o privilégio de assistir a peça escrita por Contardo Calligaris, “O HOMEM DA TRAJA PRETA”. Com texto excelente, bem humorado e real, Calligaris denuncia as dificuldades de ser homem, de exercer a masculinidade que muitas vezes torna-se um fardo, principalmente quando acompanhada pela complexidade humana e o ritmo frenético das transformações dos costumes, no caso da peça, os sexuais.

Calligaris, na sua condição de psicanalista não poderia deixar de abordar que parte das dificuldades masculinas tem origem no útero materno, quando a mãe idealiza e “inventa” a pessoa que está gestando. Nascemos, segundo nossos pais, para sermos diferentes, especiais, mas iguais a todo mundo. Porque o diferente incomoda e exige uma criação diferenciada de quem é “normal.” Não é à toa que a indústria de brinquedos fabrica Super Heróis para crianças até determinada idade. Sabem eles que vão ao encontro do imaginário infantil e paterno, uma vez que pais incentivam e se colocam como super homens para suas crias até determinada fase da vida da criança que, quando adolesce descobre outros ídolos.

Mas meu texto, até agora, me parece e a quem assistiu à peça, óbvio. O grande “insight” que a peça provocou em mim foi que todos nós, homens e mulheres temos “tarjas pretas” censurando o que somos nos bastidores dos nossos “bastidores”. Todos têm uma “persona” como disse Jung.

Por trás de cada tarja preta carregada de censuras, culpas, pudores, medos, inseguranças, existe alguém com olhar fixado no vazio e buscando o caminho certo, como se ele existisse ou fosse único

Todas as culturas valoram comportamentos, grosso modo, como convenientes e inconvenientes. E é para isso que servem as tarjas pretas, para cobrir nossas inconveniências. Nossa tão propalada e necessária privacidade esconde o engodo que apresentamos socialmente. Porque o que apresentamos socialmente é um engodo. A mentira conveniente. É nossa privacidade que esconde nossa verdadeira “face”, nosso sorriso de vanglória quando a arrogância de alguém se esbarra com a humildade vitoriosa de outra. É nossa privacidade que esconde quando roemos as unhas dos dedos da nossa ansiedade, quando não tiramos os olhos do telefone esperando ouvir “aquela” voz que teima em calar-se, quando buscamos na ficção a satisfação de fantasias não realizadas, os beijos que não degustamos ou as bofetadas que gostaríamos de ter aplicado até as vinganças que não consumamos.

Porque somos sim, carregados, também de sentimentos negativos. Ira, gula, avareza, soberba, este, ninguém tem, todos se acham humildes, inclusive eu. Preguiça, até tratada no diminutivo – “preguicinha” - tal o estigma e o estrago que faz na imagem de quem a assume. Inveja! Esta última então, ninguém assume, a tarja é enorme e, quanto à luxúria, chega de hipocrisia, todo mundo tem, nem que seja inconsciente e sub-repticiamente e a exerce de inúmeras formas!

Penso que, todos nós temos tarjas pretas a nos proteger, até de nós mesmos. Como campos de força ou como trincheiras contra este “outro”, que um alguém muito importante, chamado Sartre, classificou de infernal.

Voltando à peça, “falou” da sexualidade do ponto de vista masculino. Já estava na hora de uma abordagem séria e, queiramos ou não, com conteúdos concretos. Foi de uma verdade massacrante, por isso saímos todos achando que valeu a pena sair de casa para ouvir o que já sabíamos.

Mas se a perspectiva do texto fosse feminina, sairíamos felizes e sorridentes sim, não só pelo toque de humor contido no texto, mas tenha certeza, algumas lágrimas emocionadas seriam vertidas. Tanto pelo normal pudor feminino como pelo eventual, mas redentor despudor de, enfim, alguém rasgar por dó e por piedade nossas inúmeras e pesadas tarjas pretas que a condição feminina nos impõe.

Por gloriosos momentos, veríamos nossas dificuldades descaradamente expostas.

ALICE ROSSINI

9 comentários:

Vitória Régia disse...

Independente de ainda não ter assistido a peça, seu "insight" é uma verdade. Todos usamos máscaras. Como voce diz, convenientes para nós ou para os outros, escondendo a pessoa que realmente somos, o que pensamos e o que sentimos.
Ficando, sim, escondidas sob tarjas pretas, (aquelas da censura), as nossas verdades, quem realemnte somos e queremos.

Como sempre voce vai fundo e sem medos e "máscaras" nas questões que nos incomodam e não temos coragem, sequer, de comentar

Lourdinha disse...

Parabéns, amiga, pela abordagem clara e bem fundamentada. Fiquei curiosa e motivada a ver esta peça.
Daqui a pouco seus leitores poderão dispensar seus respectivos analistas, os "insights" e temas levantados por você nos instigam a fazer maravilhosas reflexões...!

Penha Castro disse...

O fato de não ter assistido a peça, acho que me isenta das contaminações de outras abordagens, embora, voce tenha sido clara que a texto que ouviu lhe mostrou outras coisas. Incômodas de sentir e corajosas quando escritas.

É esta a sensação que sinto. Que vivo num palco, onde todos usam as máscaras da conveniência, ou para serem aceitos ou para terem forças para aceitar o outro.

Confesso que me vi e vi muitas pessoas em situações descritas por voce. É por estas e outras que, muitas vezes me abstenho de comentar sobre a vida alheia, pois não sei se estou comentando sobre uma pessoa ou sobre um personagem.

Parabéns, se texto, além de bem escrito e verdadeiro, deve ter incomodado muita gente. Esta é a missão de quem escreve, tirar as tarjas.

Amanda disse...

Como seu sei que existem mascaras. Tarjas pretas que colocamos para nos prteger tanto da violência quanto das necessidades dos outros. Tarjas que nos impedem até de reconheecer as nossas necessidades. Independente da peça falar das dificuldades masculinas, as tarjas estão em todos, homens, mulheres e até em crianças quando tentam camuflar carências.

Texto forte e preciso. Belo também

Parabéns!

Cecília Fraga disse...

Belo e corajoso texto. Escrever não é so usar a gramática e a ortografia de forma certa e bonita, embora a estética seja necessária. Escrever é tentar transformar, acender a chama da duvida. criar incertezas que perguntam e se não respondem, incentivam o raciocínio e a reflexão.

Estou cada vez mais encantada com seus textos.

Parabens!
p.s. o fato de não comentá-los não significa que não os leia

Ricardo Farias disse...

MAIS UMA VEZ VOU RASGAR SEDA. PRIMEIRO PELA PRIMEIRA PARTE DO TEXTO QUE ELOGIA A PEÇA. SER HOMEM E F... MULHERES ACHAM QUE SOFRIMENTO É MONOPOLIO DELAS.

MAS, O TEXTO FOI MAIS ALÉM. MINHA "ESCRITORA PREFERIDA" PENETROU FUNDO NAS FRAQUEZAS E MEDOS HUMANOS DE MOSTRAR QUEM É. COMO DIZ, O "OUTRO" MANDA MAIS QUE O "EU".

TODO MUNDO CURVANDO-SE ÀS CONVENIÊNCIAS E FAZENDO CARA DE BONZINHO E FELIZ.

BELA CHICOTADA, ADOREI

IZABEL disse...

Alice,

Este texto nos faz mergulhar nos oceanos do nosso SER, onde encontramos sereias, algas marinhas, peixinhos coloridos e fosforescentes, estrelas do mar, mas também encontramos - tubarões, monstros marinhos e principalmente com a ESCURIDÃO, com o desconhecido. Parte sombria que não queremos enxergar e encarar – muitas vezes por medo e outras por conveniência, pois a “cegueira” nos protege de desejos reprimidos e de impulsos “não civilizados”, de motivos moralmente inferiores, de fantasias e ressentimentos infantis.

Que possamos “encarar” as nossas tarjas pretas... Vermelhas... E até nos desvencilhar das nossas “fantasias de múmias”, que mais que “tarjas”... Imobilizam-nos!

Beijinhos e "reverências" para a minha escritora preferida,

Bel

Anônimo disse...

Cara Alice

Gostaria de lhe parabenizar por estes dois últimos textos, que necessariamente estão interligados.Quanto a Etica do Desejo, tanto Freud como Lacan concordavam que devemos civilizar...dar juizo as nossas pulsões, ou como dizia a minha avó, não se deve forçar muito a natureza.

Um abraço

Sergio disse...

Tenho lido o seu blog sempre, embora nem sempre comente, parabéns pelo tarja preta.
Beijo
Sergio