quinta-feira, 8 de abril de 2010

O BANHO DE LUCIANA

Poucas vezes a televisão brasileira presenteou seu público com uma “aula de amor” tão contundente, através de uma cena de novela. Foi ao ar no dia 5 passado, no horário das oito - “Viver a Vida”- o banho de Miguel e Luciana.
Para quem não assiste à novela, Luciana é tetraplégica e Miguel, seu futuro marido.

Sei que muitos vão dizer, “ora, o casal está apaixonado...”. Concordo que muito da beleza da cena deveu-se ao talento, à paixão e à química que é evidente entre os atores, mas o autor da novela consegue, através da singeleza e da simplicidade ampliar e modernizar vários conceitos comuns a relacionamentos entre homens e mulheres.

De aceitação, porque Miguel durante a cena ratificou a beleza física e interior da mulher que ama, através e apesar das suas limitações.

De erotismo, quando desloca o foco do desejo das sensações físicas de um e de outro, lendo no olhar da mulher amada o que ela gostaria de poder sentir e lhe oferecer não fossem os limites do seu corpo e transferiu seu desejo por ela, das zonas tradicionalmente erógenas, para deitar no seu colo, tal qual uma criança. Aceitou com inocência infantil e expectativa masculina, as caricias vindas das mãos “sequeladas” pela doença.
Ficou provado para os dois amantes que, se para um deles, o erotismo e o desejo ocorreriam somente na imaginação, para os dois, o sexo seria liberto nos limites e libertino nas possibilidades, já que o imaginário de um deles o comandará. Assim, poderá seguir caminhos novos e quem sabe, mais vibrantes.

De intimidade, quando Luciana convida Miguel para ver seu corpo nu, onde a tetraplegia já roubou o tônus muscular e tecidual. A relatividade que este detalhe assume para o casal, no momento do convite, derruba um paradigma vigoroso da nossa sociedade, de que só os belos e perfeitos são amados e desejados.

Quantos casais saudáveis entregam-se tão carinhosa e emocionalmente, tornando um hábito corriqueiro num acontecimento cheio de encanto?
Temos uma visão estreita e pouco criativa sobre como transformar nosso cotidiano numa fonte de felicidade e prazer e o hábito de tornar mecânicas e banais tarefas simples, mas necessárias, desvalorizando-as porque nada nos custa executá-las.

Condicionados a nos considerar felizes quando o que previmos acontece e atende aos parâmetros de “normalidade”, não pensamos que previsibilidade é um conceito confortável para muitos e necessário para todos porque sabemos que o imprevisto é a sua outra face. Quanto à normalidade, por ser subjetiva varia de acordo com as expectativas pessoais e muda com os costumes vigentes. Raríssimos são os que adotam uma forma de viver, cuja “normalidade” atenda mais aos seus conceitos que aos vigentes.

Portanto, ancoramos nossas expectativas e sensações de plenitude em pilares, cujas bases, não nos garantem nem a tão ansiada segurança. A vida, por si só, não segue estes princípios. Ela consegue nos surpreender mais que a mais fértil imaginação de romancistas e dramaturgos. É exatamente neste veio que o autor da novela abre caminhos para reflexões e questionamentos.

Na ficção a atração entre Miguel e Luciana é subjacente ao acidente. Com a fatalidade ela assume características dramáticas e conta com um ingrediente explosivo que é o fato de Luciana ter sido noiva de Jorge, irmão de Miguel.

A novela ao escancarar situações desconcertantes e incômodas que ocorrem na vida real com a naturalidade e o conforto da ficção não invalida o debate em torno do “amor impossível”, ainda que limitado física e socialmente. Já escrevi aqui, em algum lugar, que não existe amor impossível, mas “relações inconvenientes”. Sempre para quem está fora delas, claro.

Se as conveniências fossem ouvidas estaria Luciana, além de fadada à tetraplegia e a todos os inconvenientes que dela decorrem, a viver com um homem que a encararia, eternamente, como uma deficiente, sem acesso a um simples banho de mar ou ao sentimento supremo de sentir-se desejada e bela, fora dos contextos convencionais só porque, em vez de amar um irmão ranzinza e preconceituoso ama o outro, realista, bem humorado, consciente da relatividade das suas limitações e com uma visão de que a vida é um manancial de possibilidades.

ALICE ROSSINI

11 comentários:

Unknown disse...

Alice,

Adorei o texto, esta cena foi realmente mto bonita!

bjos

Penha Castro disse...

Alice,

Sua sensibilidade, neste texto, bateu o próprio recorde. Embora esta cena tenha emocionado muita gente, varias viram nela o óbvio, que foi o romantismo mas, pouquíssimas enxergaram tantos detalhes que fazem a diferença no sucesso da relações, amorosas ou não.

Numa sociedade onde as deficiências são vistas como motivo de exclusão, a relação amaorosa entre uma tetraplégica e um homem jovem e bonito pode parecer impossivel.

O mérito da novela é mostrar o contrário. O seu foi mostrar o quanto pode ser bonito e carregado de prazer e emoção.

Parabéns pela percepção aguçada para as coisas simples e belas

LIA disse...

Lindos, elucidativos e emocionantes, tanto a cena quanto o texto que tão lindamente o comentou.

Se todas as pessoas vissem a vida pela ótica da profundidade e do essencial o mundo seria tão diferente!

Sei que estou sendo utópica mas, estou ainda sobre o impacto da leitura do que escreveu. No dia da cena também fiquei emocionada mas hoje pude enxergar mais além.
Adorei!

Sérgio Gomes disse...

Querida Alice,
não assisti à cena da novela e portanto não tenho o emocional das imagens, mas aprendi, na vida, que tudo é possível quando há amor e admiração entre as pessoas. Já diz o ditado popular: quem ama ao feio, bonito lhe parece. Feio, aqui, no sentido de incomum, do não estereótipo. É verdade, por outro lado, que nessa sociedade das aparências, na qual vivemos, casos como o da novela são exceções. Mas, a ficção está aí para exaltar os casos exemplares, senão ela até não teria sentido, a não ser que fosse para denunciar o oposto, ou seja, a rejeição a uma pessoa em situação excepcional, normalmente relegada à discriminação, infelizmente. Veja, ainda hoje existem pessoas apartadas por causa da cor da pele... O movimento de valorização dos negros norte-americanos procurou exaltar que "black is beautiful". Parabéns pela sensibilidade do seu comentário.
Beijos,
Sergio

Ana Maria disse...

Oi Alice,

Assisti a cena e acho que voce a descreveu e a analizou muito bem. Tudo que eu acho mas não tenho seu talento para escrever.

Parabéns

Andrea Diniz disse...

Texto lindo!!

Vitória Régia disse...

Lindo texto! Nem vi a cena mas voce consegue passar a emoção que voce sentiu e que deve ser a que foi sentida por milhares de telespectadores.
Todo mundo la no trabalho comentou este banho, não vi porque fui ao cinema.
Felizmente pude sentir a emoção através de voce
Obrigada

RICARDO FARIAS disse...

NÃO VI A CENA MAS SEU TEXTO DEIXA CLARO O ESSENCIAL, CUIDAR E ACEITAR AS PESSOAS FAZ PARTE DE QUALQUER RELAÇÃO. MAIS UMA VEZ VOCE ME SURPREENDE COM A SURPRESA DO TEMA.

PARABÉNS

Aparecida Matos disse...

No outro dia da cena os "noveleiros" comentavam a paciência e o amor de Miguel.

Voce como sempre foi mais fundo e mais amplo. Quanta sensibilidade. Sua forma de escrever depende de tecnica e talento. O que escreve depende da forma sensivel com que encara o mundo.

Parabéns!

Marco Rossini disse...

Como assistimos juntos à cena, juntos nos emocionamos. Conhecendo voce como conheço, sabia que aquele seu silêncio resultaria num texto onde sua sensibilidade e perspicácia me surpreenderiam mais uma vez.

Sua capacidade de ver beleza nos "pequenos grandes" gestos continuam me encantando

TE AMO

IZABEL disse...

Alice,

Amei o texto! Linda a forma com que você “relatou” uma cena tão rica de simbolismos...

Além de tudo o que foi comentado sobre o texto, torço que não só a “cena” como o próprio texto, sirvam de reflexão para revermos os nossos conceitos e pré-conceitos.

Bjss