domingo, 26 de setembro de 2010

O ESTORVO

“Vejo a multidão fechando todos os meus caminhos, mas a realidade é que sou eu o incômodo no caminho da multidão”

Este é um pequeno trecho do livro “O Estorvo” escrito por Chico Buarque. Este título sempre me incomodou. A condição de ser um estorvo é indigna e humilhante. Estúpida e covardemente nunca o li.

Tlavez porque às vezes me sinto um estorvo de mim mesma. A sensação de que eu própria me atrapalho. Uma pedra no meu caminho quando minha humanidade, impregnada de vicios, covardias, impulsos e fraquezas transborda por todos os cantos e recantos do meu existir. Vez por outra a sensação é de que estou à deriva, perdida no oceano de mim mesma e emitir o sinal "SOS" atrapalharia o salvamento de criaturas mais necessarias.

Poderia ter lido "O Estorvo" numa viagem porque não consigo dormir em avões. Ouço, quieta, os ruídos oriundos da aeronave, os emitidos pelas pessoas mais próximas ou compro um livro e o devoro até que desembarque no meu destino.

Numa destas circunstâncias tive o desprazer de ouvir uma violenta discussão entre um casal, ainda jovem. A princípio normal. Todo casal briga. Até que ouvi a frase “você é um estorvo”.

Como eu, ela ficou petrificada. Apenas o corredor estreito nos separava e pareceu-me que a palavra nos atingia com a mesma intensidade. Estávamos tão próximas que me senti obrigada a dividir com aquela mulher o impacto da agressão. Comecei a divagar. Meus devaneios misturavam minha assumida aversão à presunção das sensações dolorosas que a criatura ao meu lado poderia estar experimentando.

Estorvo é ponto final. É veredicto. Depois de ouví-la sem estar devidamente preparada, o que contra argumentar? Crendo na condição, sair andando sem olhar para trás poderia levá-la ao enfrentamento com uma realidade já sabida e tão cruel, que as nuvens emolduradas pelas janelas da aeronave apontavam uma solução. Não crendo, ainda que saísse correndo sem olhar para trás o veredicto já transformava em fragmentos o que poderia ter restado daquela pessoa. No vértice da encruzilhada, entre um caminho e outro, "o estorvo" se reserva o direito de continuar sem escolha.

Pelo menos na minha cabeça onde se misturavam fantasias e realidades, aquela mulher um dia encantou aquele homem. Um dia não foi estorvo, foi solução. Um dia foi sonho, e o infinito cenário de tudo que acreditavam possível. Jamais imaginaram que entre eles se ergueriam paredes claustrofóbicas.

Questionei-me se existe um marco onde os relacionamentos começam a adoecer ou, simplesmente morrem de “morte matada” pela violência de uma palavra dita ou das que ficam presas nas gargantas e os sufocam. Perguntei-me quando, na convivência de um casal as possibilidades se inviabilizam. Em que momento o que era onírico transforma-se em realidades carregadas de armadilhas e nevoeiros que obstruem caminhos, escondem atalhos.

Cuidado! Palavras tem peso. Densidade emprestada pela história de cada um. E seu significado é acompanhado de conceitos que constroem ou acabam por destruir. O que apenas seria uma simples combinação de caracteres atua como um verdugo comandando uma guilhotina, com poder de pena capital.

Porque, assim como eu, distanciada emocionalmente do confronto sucumbi ao seu poder, a mulher considerada um estorvo pelo companheiro deve, ainda impactada, estar buscando forças para escalar a parede que lhe dê acesso ao que um dia representou.

“Porque nesses seis meses tudo que falamos antes virou barulho, fica difícil retomar a conversa” trecho do livro O ESTORVO de Chico Buarque.


ALICE ROSSINI

13 comentários:

Lú disse...

Muito além da sua possível erudição ao fundamentar seu texto com referências, o tratamento do foco central - a força das palavras - está simplesmente fantástico, e principalmente muitíssimo bem escrito. Parabéns, minha amiga, mais uma vez!
De uma forma especial este tema me impacta, como me impactam palavras ditas sem a devida mensuração dos danos possíveis. E o pior: assim como a moça do texto (sua involuntária companheira de viagem), palavras dolorosas nos assombram ainda mais porque invariavelmente ditas por quem mais amamos, vindas então de onde menos esperamos. Palavras tem mesmo muita força, para o bem e para o mal, e todo cuidado com elas é pouco; são capazes de construir tanto belos castelos quanto muros instransponíveis; podem ser instrumento tanto da nossa ratificação quanto da nossa invalidação como pessoas. Resta-nos tratar nosso coração, nossa cabeça e nossas próprias verdades para reduzir o impacto das lanças afiadas em que podem ser transformadas as palavras.
E finalmente, pensando assim, dou vivas à maturidade!

Penha Castro disse...

Mulher que agressão!! E que percepção a sua! Registrou a crueldade humana na sua manifestação mais contundente que é a palavra que fere como uma bala no orgão vital.
A auto estima da desconhecida a quem voce se aliou, silenciosamente, deve ter ficado no chão!
O pior é que, pela minha experiencia, isto é um processo de destruição e auto detruição, claro, que ja vem de longas datas. Também estou fazendo inferencias. Mas seu texto é tão forte e atinge tanto homens como mulheres, pois qualquer um pode ser vitima de uma agressão desta que, ainda que não tivessemos a oportunidade de presencir o fato, nos faz refletir quanto as pessoas podem se magoar.
A concisão com que foi relatado tornou-o mais dramático e mais grave.

Aparecida Matos disse...

Indignação! Este foi o sentimento que experimentei ao ler sua crônica. Como pode uma mulher deixar que seu relacionamento crie espaço para ofensas desta natureza?? Já o li algumas vezes e quanto mais o leio mais aumenta minha indgnação. Seu texto incomoda porque, infelizmente, é verdadeiro e mais comum que imaginamos.

Gosto do jeito que escreve. Não tem quem fique indiferente. Só os indiferentes e os que fogem da realidade.

AMANDA disse...

Também, lendo seu texto tão bem escrito, me coloco no lugar da mulher vítima de uma humilhação tão grande. Imagine o que não deve ouvir entre quatro paredes ja que, em público o companheiro demonstra tamanha falta de respeito. Como voce diz, ele também é um estorvo dele mesmo, que não tem a coragem de livrar-se do peso que a companheira representa na sua vida.

Roseane disse...

Que horror a relação deste casal! Mas as coisas que falamos tem repercussões na vida das pessoas que nem podemos avalair a extensão.

Temos, sim, que ter cuidado com as palavras porque, o que para nós é uma simples observação ou uma cruel vontade momentânea de ferir, nos outros pode ter efeitos marcantes e destruidores.

Mas alguem que houve uma agressão desta natureza e deixa o ofensor impune é doente e precisa reavaliar sua auto estima

Ana Clara disse...

Quem não vê bem
uma palavra
Não pode ver bem
Uma alma
(Fernando Pessoa)

VIC disse...

Estou sem palavras. Igual à sua companheira de viagem. Não entendo como duas pessoas convivem vendo uma na outra um estorvo! Mas, infelizmente acontece. Muito casais se aturam por comodismo ou medo de aventurar-se a buscar a felicidade e a paz de outras maneiras.

Foi um dos textos mais fortes que voce escreveu e, pior, foi baseado num fato real.

RICARDO FARIAS disse...

SENTI UM SOCO NO ESTÔMAGO AO LER SEU TEXTO. FORTE E REAL ME INCOMODOU E ME FEZ PENSAR NA IMPORTANCIA DO QUE DIZEMOS. AINDA ESTOU PENSATIVO E NÃO TENHO MAIS NADA A ESCREVER. SÓ REPENSAR TUDO, MESMO.

ZEUS disse...

Pessoas com sua sensibilidade registram com mais sensibilidade ainda fatos revoltantes como este. Seu texto está impecável e voce conseguiu transmitir toda a dramaticidade da situação vivida por uma estranha sem que nada pudesse fazer para se defender. Pelo menos no momento.A covardia do copanheiro reside, justamente, na situação de vulnerabilidade em que que ela se encontrava.
Que a aressão lhe tenha servido de alerta!

Marco Rossini disse...

Seu relato que, felizmente, não assiti pois, ao contrario de voce, procuro dormir em viagens de avião, é compatível com o impacto negativo que o fato lhe causou.

Sabemos que no calor de discussões dizemos coisas que não queremos nem pensamos serem verdadeiras.
Mas, neste caso, o cara extrapolou, pois aproveitou-se de uma situação de desvantagem da companheira para desferir-lhe um golpe que pode, até, ter ferido de morte a relação.

Entretanto, em que pese a falta de respeito, uma pessoa que convive com alguem que lhe parece "um estorvo", além de incapaz de gerenciar a propria vida, emprestando-lhe qualidade, é um covarde que faz mal uso de um recurso - a linguagem - que devemos usar para entender e sermos entendidos.

Paulla Dyeli disse...

"Não sei se a vida é curta, ou longa demais pra nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita. Alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove. E isso não é coisa do outro mundo, é o que dá sentido à vida, é o que faz com que ela não seja curta, nem longa demais, mas que seja intensa,verdadeira, pura... enquanto durar."
(Cora Coralina)

Anônimo disse...

Nunca ouvi uma história tão cruel! Alguém que rotula outra de estorvo, além de desrespeitá-la não se respeita pois, vive uma relação doente, sem perspectiva. Além de anular o passado, se um dia foi feliz.

Fernando Trovador disse...

Alice:

Qualquer homem covarde o suficiente para emitir um veredito dessa natureza, é por si só o proprio estorvo. Não só para destinataria de sua acometida, como tambem ao ambiente que o cerca.
Uma pessoa assim está longe de qualquer perdão pois em termos de relações afetivas, só um estorvo reconhece outro.
Me parece que com o evoluir dos tempos, as pessoas tem cada vez menos respeito de qualquer natureza, seja por quem seja, muito menos por quem, alguns acham, ter direitos de autoridade e propriedade.
Como sempre, a tua indignicao foi retratada com o que de melhor existe em administracao de palavras e sentimentos.
Bravo texto!

Bjs.