o cotidiano e suas contradições, descrito e compartilhado - Blog inaugurado em 18 de fevereiro de 2 009 - ANO VIII
domingo, 18 de outubro de 2009
BERGGASSE,19
Quando escrevi este texto, a personagem que o inspirou já não estava comigo. Se estivesse, certamente o teria escrito numa posição mais confortável, pois, ela faz parte de uma estirpe de gente, que demonstra o amor no varejo. Nos pequenos detalhes, nos simples, mas determinantes gestos que podem tornar a vida mais leve e mais amena: a acomodação de um travesseiro, um pedacinho de chocolate na boca, o cuidado com sua segurança, a preocupação com seu cansaço ou o porquê do seu desânimo.
Foi assim, cercada pela generosidade de outra mulher, que o destino quis que realizasse um dos grandes sonhos da minha vida; conhecer onde viveu grande parte da sua profícua existência, um dos homens que mais refletiu sobre a condição humana e influenciou na sua forma de percebê-la: o austríaco judeu, Sigmund Freud.
Gostaria muito que ele soubesse que foi a persistência e a determinação de uma representação das suas maiores preocupações, que permitiu que chegasse até o sobrado da Berggasse n.19, Viena, lugar onde viveu 49 anos até que, obrigado pelo terror do nazismo, se refugiasse em Londres.
Apesar de não termos tido o tempo necessário para que visitássemos o museu, hoje dedicado ao pai da Psicanálise, andar por aquela rua que parecia compreender a grandiosa missão que cumpria para a história do conhecimento, entrar pela pesada e bem talhada porta de madeira que antecede uma ante-sala, preservada por janelas de vidro ornadas com flores jateadas, que permitem que o sol a ilumine, foi tão emocionante quanto sentir a cumplicidade e a adoção do meu sonho por minha amiga que, não por acaso, chama-se Margarida. Uma flor singela, que floresce em generosa profusão, iluminando e alegrando onde quer que esteja.
Não vou ter a pretensão de, aqui, tecer algum comentário sobre o legado freudiano. O que registrarei, na condição de leiga, a humanidade se beneficia e a ciência já reconheceu a importância.
Ter anunciado que o homem age conforme os comandos do inconsciente, que os filhos machos sentem-se atraídos pelas mães, ter falado em sexualidade infantil e em orgasmo feminino na Viena do século dezenove, já o tornaram um homem à frente do seu tempo e um cientista, cuja contribuição, atravessou séculos sempre de forma controversa e instigante. Ao referir-se ao atávico mal estar do ser humano, devolveu-o a possibilidade de reconhecer-se.
Portanto, meu esforço em visitar o que Viena preservou da sua memória, foi uma humilde homenagem e uma singela manifestação de gratidão ao que, ainda representa.
Se Doutor Freud imaginasse quanto nós mulheres lutamos e o quanto ainda falta para sermos livres! Que todos, homens e mulheres ainda vivemos angustiados e insatisfeitos, enquanto a indústria farmacêutica esforça-se para, quimicamente, descobrir a “pílula da felicidade” que minore nossa insatisfação, cujas raízes foram por ele expostas e apontadas para nossa condição de seres finitos...
Apesar de ter passado a maior parte do seu tempo tentando, em vão, desvendar nossos mistérios, pessoal e ousadamente, penso que muitas das suas teorias teriam sido, por ele, desconstruídas, tal a consistência do seu rigor científico e, muito teria ratificado, pois tudo que foi dito a respeito, o teve como referência.
Entretanto, ao reconhecer as especificidades inerentes à nossa condição feminina, equiparou-se à limitada compreensão humana sobre si mesmo, dizendo-se também, incapaz de entender-nos.
Só não imaginou, até porque o mundo àquela época não permitia, do quanto seríamos capazes se nos uníssemos.
Que poderíamos mudá-lo para melhor com as mesmas dificuldades, a mesma cumplicidade e a mesma persistência com que descobrimos, entre todas as ruas de Viena, onde fica o sobrado n. 19 da Berggasse.
ALICE ROSSINI
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8 comentários:
Acho que não conheço ninguem que ja tenha tido o privilégio de conhecer a casa de Freud. Voce é a única e tenho certeza, que a única a sentir a experiência de forma tão bonita. Um relato emocionado, onde a gratidão, uma das maiores qualidades humanas está presente tornando u texto bonito e emcionante.
Parabens pela visita e pelo que voce conseguiu extrair dela
Acredito, pelo que sei de voce, que este deve ter sido um sonho. Que bom que realizou e com a ajuda da sua amiga. Com certeza, alem de ter compartilhado uma expereincia tão bonita foi alvo de sua homenagem e tanto voce quanto ela, jamais esquecerão a aventura!
A crônica está linda!
Que maravilha! Visitar onde morou Freud! Seu texto faz jus á importancia do privilégio!
bjs
Alice,
Que texto lindo! Além do seu “passeio psicanalítico”, você presta uma homenagem a uma amiga que teve um gesto, como foi batizado por você, de “amor no varejo”. Realmente hoje em dia é difícil encontrar pessoas que saibam amar, e receber amor desta forma... Amor é ação.
Beijos,
Bel
Lindo o texto. Próprio de quem sabe valorizar os gestos dos amigos. Voce é uma pessoa atenta aos momentos, raro no mundo de hoje. Merecida a ida a casa de Freud, porque voce conseguiu enxergar o valor da visita e sabe a importancia do visitado.
p.s. sempre leio seu blog.
Nossa! Estou adorando seu blog. Fala de tudo, sem restrições, de forma simples e poética. Feliz o dia em que recebi este endereço.
Este texto ta tudo de bom, parabéns!
EITA FREUD ADORADO PELAS MULHERES, NAO SEI PORQUE...
Que inspirador! Alice, amigo para mim é sinônimo de Margarida, feliz de quem partilha sua amizade, a energia que flui é tão boa que no minimo resulta no que vc experienciou!
bjs
Lu
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