quinta-feira, 15 de outubro de 2009

EU, LUCAS E CLARICE

Pouco me passou pela cabeça a idéia de escrever sobre meu neto. Já há diários demais, blogs e vidas expostas em quantidade suficiente. Já tinha até desistido não só de escrever como também de ser avó, quando Lucas, que poderia ser Mateus ou Thiago -- meu nome preferido por acreditar mais forte --, disse olá na minha vida.

Desde que soube que viria, fiquei quietinha, com medo de, ao externar alegria, atrair alguma malasorte (como dizia minha sertaneja mãe, que também insistia em chamar rosbife de malassada ), palavra que o Word logo tinge de vermelho em desaceitação. Alguns contratempos pareciam confirmar a tese de que ele era seria sempre apenas uma ficção, um personagem do livro que jamais escreveria.

Mas ele apareceu, apesar de e por sobre os meus medos. E é um bom menino. É fácil amá-lo. Embora não seja lá muito bem- humorado. O que para qualquer criança é coisa engraçada, de rolar de rir, nele vira apenas um tema de curiosa reflexão e de franzir de testa, como se pensasse: “que diabos ela pensa que está fazendo?”. Escolhe do que rir, como quer, a hora em que quer, e, muitas vezes, faz isso retribuindo o sorriso do outro, daquele que não sou eu, -- na maioria das vezes, seres absolutamente inanimados: plantas que o vento balança, ventiladores de teto, fotos antigas, cores, luzes, meu pai e minha mãe em foto desde que o mundo é mundo.

Mas o que escrevo aqui, penso eu, é menos sobre netos e mais sobre o que eles refletem. É sobre aonde ele me arremessa: ao que fui. Com ele, por exemplo, voltei a viver um tempo inenarravelmente lento, como só os domingos sabem ser. Acho os três meses que fará em 18 de outubro uma eternidade. É o tempo que achava que durava o ano até o chegar o carnaval, quando era menina e acreditava mais em Deus. Ou o Natal, o que dá no mesmo, porque o essencial aqui é a espera de alguma coisa boa.

Lucas é também o único traço a mostrar estive aqui, embora só para alguns, que andei por essas ruas e, mais do que por aqui, caminhei por Salvador, embora não diga mais nada de mim -- de quem fui, como pude e o que restou, ao fim. É também a única testemunha de como mudei, porque os outros mal viram como me encolhi igual a uma concha.

Pensar que andarei por aqui quando não mais estiver, mesmo que não seja exatamente eu, consola e alivia as dores de um tempo em que pessoas não importam. Quiçá, mas isso já seria de uma sorte inacreditável, sonhe os sonhos que não me foram possível.

Em pessoas como eu um neto não convida só ao brincar e a contar peraltices. Obriga à reflexão sobre a velhice e a desistência de ser o que se foi.

Que memória terá o meu neto de mim? Que Deus me ajude a ser só uma pequena parte de quem sou hoje. Não sou nem a sombra do que fui – e nem sei é bom, aliás, creio que de todo não. Hoje sou gentil e cumprimento até a quem não gosto. Mas engulo sapos que coaxiam nas madrugadas de minha alma. Não grito mais que é crime o que andam fazendo com o Velho Chico, meu São Francisco, que vai inundar as terras dos que já têm tudo até água e secar a sua própria e generosa fonte. E o povo nordestino continuará a ser aquele que acha que Dilma, em quem diz que vai votar, é a "esposa" do presidente. Aquele que não só ler sem entender, como também ouve sem pensar (já que as TVs falam dela sempre

Analfabetos funcionais de olhos e ouvidos.

Mas, pensando bem, talvez seja bom que testemunhe o que "pode suceder quando se pactua com a comodidade da alma". É o que disse Clarice, a Lispector, numa carta as irmãs. "Não pensem que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro" ...

Ela diz mais e melhor do que eu: " Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma em boi. Assim fiquei eu…Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força".

Que seja passageiro.esse estado de andar na vida só por ver os outros andarem.

ROZIE BAHIANA, jornalista

5 comentários:

Alice Rossini disse...

Quando li esta depoimento pela primeira vez emocionei-me à lágrimas e, impulsivamente, respondí à autora que, muito generosamente, dipsponiblizou-o para postagem neste Blog.

Depois de relê-lo várias vezes, primeiro descobri o que mobilizou em mim tanta emoção; minha vontade de eternzar-me através dos filhos dos meus filhos e perceber o quanto este evento é capaz de adoçar e tornas mais arguta a percepção de uma pessoa, tornando-a mais sensível do que ja é.

Com as emoções mais aplacadas, percebo que o texto prescinde de comentários. Basta sentí-lo

Alice disse...

Continuando, pelo que percebi, pela quantidade de erros de digitação do texto acima, que a emoção não se desgrudou de mim. Esta, a função da arte, tornar-nos, com ela, uma coisa só.

IZABEL disse...

Ao chegar de um encontro com um grupo de amigas, abri o BLOG para ver as novidades. Deparei-me com um texto que parecia ser uma continuidade deste encontro. Onde mulheres discutem as suas vidas, as suas experiências, as suas inquietações, as suas transformações.

Deixei-me ser envolvida pela emoção fortemente “agradável” que o texto me proporcionava, optando por apenas SENTIR.

Rozie, obrigada pelo texto, obrigada pela “partilha”, obrigada por ter perpetuado a minha noite.

Izabel

Penha Castro disse...

Emocionante e criativo. Me deixou sem palavras...

S I M P L E S M E N T E L I N D O!

Mariana disse...

Puxa vida! Este texto é para ser sentido e não lido. Concordo com todos os comentários acima