quarta-feira, 19 de maio de 2010

A MALDIÇÃO DOS NÚMEROS

Sabe aquela historinha dos carneirinhos que todo o professor de matemática conta para explicar a origem dos cálculos matemáticos? Bem, esse maldito conto sobre o dono de carnerinhos que teve de inventar a noção de “contagem” para cuidar dos animais nunca deveria ter acontecido. Eu, se estivesse lá na época, provavelmente degolaria o maldito criador antes que ele pensasse em alguma coisa que se parecesse com um “número”.

Minha aversão não é contra matemática, muito pelo contrário, algumas relações aritméticas são tão perfeitas que impressionam. O que eu poderia amassar, pisotear e jogar no lixo são os miseráveis números. Não há símbolo mais medonho e mais compressor do que eles. E o pior é que os bandidos se disfarçam, fazem-se de bonzinhos organizando nosso dia-a-dia, nos dizendo as horas, ajudando a pagar contas e melhorando o comércio. Mas se esses chatos não existissem, nenhuma dessas atividades maçantes e repugnantes existiria. Seria um grande favor, diga-se de passagem.

Números são como algemas. Como correntes que nos prendem às coisas como se fossem parasitos intracelulares obrigatórios. Um verdadeiro vírus para as pessoas. Um câncer para a sociedade. Um câncer muito bem maquiado. E por que tamanho ódio? Números destroem sonhos, acabam com a felicidade e resumem todo o processo num só resultado com poucos mais de dois dígitos.

Pense assim: uma pessoa esperando ansiosamente o dia inteiro para ir até o zoológico com a família. A felicidade e a excitação da família é extraordinária, mas mesmo que todos façam um esforcinho para sair de casa às 17h, basta ver uma placa escrito “Aberto até 16h” para todos desanimarem. Quer dizer, a alegria se dissipou no instante em que avistaram aquele grande número gerado da multiplicação de 8 com 2.

Não importa o quão grande e magnífico seja o seu sonho de se tornar o homem mais rico do mundo. Basta abrir seu saldo bancário para desanimar de vez. Mesmo que você queira se tornar uma modelo famosa, subir numa balança e ver aquele número ultrapassar 90, fará você derramar lágrimas. E não importa o quão determinado você esteja para descobrir a cura do AIDS. Basta que você não esteja entre o número de selecionados para a faculdade de medicina para que seu sonho vire cinzas.

Um aluno pode muito bem estar transbordando de confiança quanto a uma prova. Pode ter aprendido todo o assunto e memorizado todos as dicas necessárias, mas um erro na marcação das questões pode fazer com que sua nota não ultrapasse a média. Quer dizer: o moleque era inteligente e esperto, tinha estudado até descolar os olhos, mas um número resumiu todo o seu progresso em “Abaixo da Média”.

A questão é que começamos a nos achar números, visto que o câncer já consumiu todo nosso corpo. Somos o número da balança. A dosagem do remédio. A hora da reunião da empresa. O dia da viagem. A nota da escola. A temperatura do dia. O número do celular... Não é ato que, antes de mais nada, a gente só é gente se tiver CPF e RG.

RAFAEL NEVES - Estudante de 15 anos

11 comentários:

Alice Rossini disse...

Rafa, mais uma vez sua sensibilidade e sua percepção me emocionam. Não sei se é bom, aos 15 anos ter uma visão tão concreta da vida ou se esta lucidez precoce é o seu já reconhecido talento brotando cheio de criatividade, fantasia e uma necessidade premente de enxergar a vida como ela é...

Parabéns, querido, seus textos valorizam o Verso & Reverso.

Penha Castro disse...

Com apenas 15 anos observar a importancia e a determinação dos números no nosso dia a dia é realmente tarefa para quem, além de possuir o poder de correlacionar fatos, atitude própria dos escritores. Voce, garoto, será um dos observadores atentos do cotidiano, suas contradições e suas inúmeras facetas.

Excelente e original seu texto. Parabéns!

Amanda disse...

Rafael, com certeza voce será um escritor. Lembro de um texto seu muito interessante e tão criativo quanto este. Sua percepção do quanto somos, muitas vezes, transformados em números e o quanto eles são capazes de mudar nossas vidas foi um grande saque.
Adorei.

Marco Rossini disse...

Rafael

que belíssimo texto. Não lhe considero mais uma promessa. Voce já é um talentoso alquimista das letras. Escreve com emoção, inteligencia e estilo. Parabens Rafa. Tenho orgulho de te conhecer. Espero que tome gosto e nos brinde com novos textos no verso & reverso

Aparecida Matos disse...

Que idéia deste garoto! Voce promete hein, rapazinho? Não é que ele fez uma correlação perfeita entre seres humanos e sua banalização tendo os números como instrumentos malditos?

Ótimo, parabens!

Fernando Trovador disse...

Rafa

Que maneira tão simpática, bem humorada, inteligente e quase musical em nos fazer saber que voçe chegou à triste conclusão de que não somos mais do que numeros, neste planeta onde a densidade demogràfica cresce em progressão exponencial. Parabéns, seu futuro está 70% desenhado e voçe tem 1 chance em 1 de se tornar um grande escritor.
Fernando Trovador

RICARDO FARIAS disse...

EXCELENTE A RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA DE COISAS TÃO ESSENCIAIS COM OS NUMEROS. ELES SÃO CAPAZES DE ENGOLIR TUDO. O TEXTO FOI ESCRITO COM HUMOR, LEVEZA E SENSIBILIDADE. RAPAZ, TEM CERTEZA QUE VOCE SO TEM 15 ANOS?(RISOS). QUANTA MATURIDADE. PARABENS

IZABEL disse...

Rafael,

Um dos indicadores de inteligência é saber correlacionar fatos e eventos. Você correlacionou - números/tempo, com uma sensibilidade madura fantástica.

São nos pequenos – grandes detalhes que a vida acontece.

Parabéns, este seu texto abre atalhos para grandes reflexões.

Um beijo,
Izabel

VIC disse...

Rafael,
Há muito tempo não leio um texto tão original. Voce conseguiu perceber o poder dos números na nossa vida.
Hoje temos que conviver com muitos: senhas, registros de documentos, de prontuários, de inscrições, que vão da fila em restaurantes à cadeira do teatro. Ainda tem as estatisticas sinistras que temos que rezar para não sermos mais um dado numa delas.
Sua visão é critica, isto nos oferece um pouco de esperança, por voce ter apenas 15 anos.

Unknown disse...

Rafa,

voce foi brilhante em sua percepcao do poder dos numeros em nossa vida. Realmente, identificar-se com os numeros e ter nosso destino ditado por eles constitui-se um grande probema. Obrigada por nos presentear com um texto tao inteligente e leve. Voce e' incrivel!

Sandra Costa disse...

Rafa,

Vc está se superando a cada dia, e nos proporcionando bons momentos. É bom saber que, apesar de vermos e ouvirmos tantas coisas tristes no nosso dia-a-dia, há alguém que nos faz ler coisas tão bonitas para levantar o astral e ter esperanças de dias melhores. Parabéns! Te amo!