quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A GARRAFA E OS ÓCULOS ESCUROS

Não tinha jeito, se havia alguém que sabia da vida alheia e não perdia tempo em fazer fofoca sobre ela eram os óculos escuros. Por trás de sua opacidade, uma personalidade enigmática, que apenas conhecemos por seu indescritível gosto por boatos e maldizeres. Vira e mexe e eles estavam a fofocar sobre a vida de fulano, espalhar rumores sobre cicrano, dividir as intimidades de beltrano com todos e revelar qualquer sórdido detalhe da vida de algum outro personagem genérico. Se, por um lado, todos adoravam ouvir as fofocas e poder apontar o dedo, também não havia ninguém que não morresse de medo de ser alvo dos boatos malditos.

Certo dia, a garrafa foi conversar com os óculos escuros. O singelo e transparente recipiente de vidro tinha muito o que conversar com ele - assuntos passados que não vêm ao caso. Após a longa conversa, garrafa e óculos escuros se despediram. Pensando a garrafa que os assuntos tinham sido resolvidos, foi grande a surpresa ao ver todos apontarem-lhe o dedo.

- Óculos escuros! Óculos escuros! - chamou ela, preocupada - Não imagina o que está acontecendo! Todos estão falando de mim pelas costas!
- É? - perguntou ele, prestando mais atenção a qualquer outra coisa ao redor - E o que estão falando?
- Tudo o que não poderiam falar! Coisas que só eu sei, que nem mesmo meus amigos sabem!
- Se não contou para ninguém, não sei como descobriram.
- Mas tem que ter um jeito! Achei que o senhor soubesse!

O óculos escuros suspirou e olhou a garrafa com um tom de desprezo, mas é claro que ela não fazia idéia das feições dele por trás das negras lentes.
- Minha cara garrafa... - começou ele - Quando a vi chegando até mim, preparei-me para ignorar um longo sermão seu.
- Sermão? - indagou a garrafa
- Sim, mas me enganei. Na verdade, eu a superestimei!
- Poderia, por favor, me explicar do que está falando?
- Eu imaginei que você, no mínimo, teria descoberto que fui eu o autor dos rumores, assim como sou o responsável por qualquer outra fofoca que já tenha ouvido.
- Foi você?! - perguntou a garrafa, mal conseguindo respirar
- Oh, garrafa... - lamentou ele - você é tão ingênua quanto transparente.
- Eu... Eu confiei em você!
- Confiou no maior fofoqueiro da região. Pra falar a verdade, você foi a pessoa mais fácil de arrancar alguma memória tenebrosa. Só preciso de uma simples olhada para enxergar através de você. Francamente, você era burra o bastante para não perceber a sua transparência ou era ingênua a ponto de julgar isto uma qualidade?

Nesse momento, a garrafa já não conseguia acreditar no que ouvia. Um grande amigo seu provara ser um verdadeiro diabo por baixo dos panos.
- Eu também vou falar mal de você! - reagiu ela
- Ah, é? - provocou ele - E o que vai falar?
- Bem... - pensou ela - É óbvio que... er...
- Você não tem o que falar sobre mim, por que não sabe nada sobre mim.
- Mas eu te conheço há muito tempo.
- Até mesmo séculos de pseudo-amizade podem ser enganados pela negritude de minhas lentes. - explicou - Por detrás delas, nada é conhecido, nada é percebido, nada é compartilhado.

A garrafa agora entendia a invulnerabilidade do óculos escuros, bem como sua suprema capacidade de espalhar rumores. Ele era como uma junção perfeita de ataque, uma figura capaz de atacar qualquer um, mas sem qualquer chance de ser atacado. Foi nesse momento que um pensamento audacioso lhe veio à cabeça.
- Sabe de uma? – perguntou ela, em tom de desafio e reflexão
- Sei de todas! – respondeu ele, convicto
- Não é uma fofoca! – explicou ela
- Ah, então o que é?
- Sabe por que gosto de ser transparente?
- Por que é retardada!
- Não, mas por que é o único jeito de deixar a luz passar por mim. - explicou
- E dai?

A garrafa sabia exatamente o que dizer, mas, naquele momento, apenas virou as costas. Ela sabia das feições do óculos escuros ao pronunciar suas últimas palavras nesta história. Por mais escuras que as lentes do óculos fossem, ela tinha certeza de ter visto o desprezo e o desdém por debaixo daquele anonimato.Ela não precisou dizer que a luz que passava pelo vidro de seu corpo não a deixava apenas visível a todos, mas também lhe abria portas para os outros. Coisa que óculos escuros algum propiciam. A garrafa apenas virou de costas e seguiu o seu caminho...

… Os últimos pensamentos da garrafa eram sobre algo que nem mesmo a habilidade de arranjar informações dos óculos escuros conseguia fuçar. O real significado da luz.

RAFAEL NEVES - estudante

7 comentários:

Alice Rossini disse...

Rafinha, é com encantamento que percebo sua familiaridade com a linguagem metafórica,referindo-se a um assunto tão corriqueiro quanto difícil de ser abordado com estilo e elegância: a transparência, a verdade e a autenticidade contrapondo-se à dissimulação, à superficialidade das aparências e a comodidade das conveniências. Que bom que sua juventude permita enxergar que a luz e tudo que ela pode clarear está em ser verdadeiro. Tomara que voce esteja refletindo o pensamento da sua geração. Pelo menos,de uma boa parte dela.
Parabéns, querido!

Anônimo disse...

RAFA, GOSTEI MUITO DO SEU MODO DE SE EXPRESSAR. SE CONTINUAR ASSIM,PROVAVELMENTE VIRA A SER UM GRANDE ESCRITOR. SOU SUA FA.
PARABENS !
GLORIA

Aparecida Matos disse...

Rafael,
Mais uma vez voce surpeeende. Não só pela pouca idade e já tão maduro literariamente, como pelos temas originais que aborda com brilhantismo.
Estou lhe acompanhando e percebendo em voce o embrião de um grande escritor

Penha Castro disse...

Imprssionante a capacidade deste quase menino em lidar com metáforas. O texto leve mas falando de coisa seria: a dicotomia entre a "verdade" e a "mentira". Cria um diálogo criativo no que achou que os sImbolizava. Fiquei encantada com o desfecho. Humor, criatividade e poesia. Parabéns

ZEUS disse...

Excelente o texto. Este garoto vai longe. Andei procurando outros textos (todos bons) dele e vi que tem 16 ou 17 anos. Muito maduro para a idade. Certamente será um escritor, independente da profissão que vier a exercer.
Parabéns Rafael, nunca deixe de escrever. Até porque, faz muito bem à alma

Unknown disse...

Rafa,

É muito bom perceber o seu crescimento, vejo com muita alegria que você vem conseguindo expressar com muita elegância reflexões profundas sobre a alma humana.
Você vai fazer isso independente da sua profissão e essa habilidade poderá te ajudar muito no caminho escolhido.
Desejo muita luz na sua vida.
Com muito carinho,

Nélia

Rose disse...

Rafael, voce é um escritor nato. Brinca com as palavras como se fizesse isto durante toda sua curta vida. Continue estudando porque escrever é um hábito que quanto mais o praticamos melhor o fazemos. Tenho lhe acompanhado e todos os seus textos tem a marca do inusitado. Todos são surpreendentes. Seja lá o que a vida lhe reserva, será sempre um escritor.
Parabéns!