domingo, 19 de julho de 2009

SARNEY NA ÁFRICA

Maio de 1986. Recebo a confirmação da embaixada do Brasil, de que o presidente Sarney e comitiva, estariam nos país durante a semana, em visita oficial. Perguntei ao embaixador se eram necessários meus serviços, e o mesmo informou que o presidente vinha acompanhado de médico, e bastava que eu me apresentasse a este como colega, para qualquer eventualidade. No mais estaria liberado, mas não poderia deixar a cidade, estando convidado para o almoço que seria oferecido pelo governo caboverdeano à comitiva presidencial brasileira. No dia da chegada dirigi-me ao aeroporto com alguns funcionários da embaixada, apresentei-me ao médico do presidente que me disse que estava "tudo ok", e que tinha estrutura a bordo para resolver qualquer “piti” ou “piripaqui” presidencial. Liberou-me presenteando-me com alguns maços de “Hollywood, o sucesso” para eu matar a saudade do Brasil – o que achei um presente estranho de médico/médico, mas adorei porque naquela época eu fumava - e marcamos para voltar a “trocar figurinhas” no almoço, pois a estadia seria curta.

Como do aeroporto o presidente ia desfilar em carro aberto pelo centro da cidade, voltei correndo para meu apartamento para trocar de roupa, e fui assistir uma coisa que nunca tinha visto: um presidente, no caso, o do meu país, desfilando em carro aberto e ao vivo. Misturei-me gostosamente com a população. As ruas estavam limpas. Crianças e adolescentes em roupas escolares, agitavam bandeiras do Brasil e Cabo Verde. As janelas repletas, pessoas com a roupa de domingo. Minhas retinas percorriam o espaço esquadrinhando cada pedaço da praça. Do velho na altura dos oitenta, negro alto, trajado de paletó, gravata, colete, bengala e chapéu côco, caminhando lenta e solenemente pelo asfalto junto ao meio fio à algazarra de alguns e ao silêncio compenetrado de outros. O burburinho dos bares onde os bêbados contumazes confraternizavam-se e já estavam “de meio fogo”, funcionários civis e militares, senhoras, enfim, uma multidão típica destes eventos.

Passei a andar atoamente pelas ruas livres de tráfego, quando vejo aparecer ao longe, numa rampa que dava acesso à avenida, os batedores em motocicletas que anunciavam a vinda do carro presidencial, um Buik preto conversível, onde despontavam no banco de trás de pé, Sarney e Aristides Pereira, presidente local. Vi-os vindo aproximando-se em meio ao esquema de segurança medianamente aparatado ( nosso presidente não tinha "ibope" para atentado). Sarney sorridente acenava para a multidão, às vezes com as duas mãos num estilo papal e olhava as sacadas, correspondendo a um ou outro cumprimento particular.

Em pé na calçada, agora por detrás de uma corda, via o “Estadista” – assim que o haviam anunciado no jornal oficial. Os inúmeros telex’s que lia quase todos os dias na embaixada traduziam a febre instalada no Brasil àquela época, com o Plano Cruzado. Sabíamos, incrédulos, dos fiscais de Sarney, e toda euforia existente no país, quando a classe política dirigente, brindava sua população com mais uma fugaz ilusão. Mas enfim, diante de mim ali estava o Estadista, e parecia mesmo que ele era. Olho para o relógio, dez horas, o almoço era as doze em ponto, com toda rigidez protocolar.

Volto a trocar de roupa, vestindo-me adequadamente para a recepção – na rua estava a “paisano”. Cheguei um pouco mais cedo no hotel onde haveria o almoço, e também onde todos estavam hospedados. No saguão encontro Kiko, caboverdeano que conhecia das paródias, metido num circunspecto paletó e colete. Não sabia que o mesmo era funcionário da segurança, fato que ele me confirmou quando, inadvertidamente, ao perguntar se ele tinha fósforos, apalpei na altura do seu peito esquerdo, o que me pareceu haver uma pistola 9 mm. Aqueles que chefiavam a segurança local tinham um apartamento no mesmo hotel, e estavam agora reunidos traçando as linhas básicas da ação naquele dia, e para onde o Kiko estava indo. Convidou-me para acompanhá-lo, dizendo que os jornalistas locais também estavam lá, sendo alguns deles meus conhecidos.

No local, sete a oito pessoas conversavam, e creio que a reunião já se findava, visto que um dos presentes circulou uma bandeja com cálices do autêntico grogue de Santo Antão, informando a posição, recebida pelo seu “wt”, da comitiva já a caminho. Saímos pisando firme, indo para o salão onde estavam chegando os convidados. Alguns seguranças ficaram à porta, sendo que dois deles entraram comigo e foram para seus postos, deixando-me só entre os já chegados. Após cumprimentar um ou outro conhecido, aceitei um drinque que circulava frouxo, e ficamos aguardando Vossas Excelências.

O primeiro Logan consertou-me as pernas que vinham meio bambas do grogue, e eu fiquei ali, nas amenidades, jogando conversa fora com um e com outro, quando chega ao salão a comitiva presidencial: Sarney acompanhado do embaixador do Brasil, Dr. Souza Gomes, um sisudo Celso Furtado, General Bayma Denis, Jorge Amado, Deputado Fernando Santana, e outros que eu não conhecia. Dirigimos-nos aos nossos lugares marcados na mesa, e ficamos de pé, aguardando que suas excelências se sentassem como manda o protocolo. Eu estava ávido para estraçalhar logo aquela lagosta suada com pirão, salada e arroz branco, ou aquele peixe au bèrre blanc com batatas e cebolas cozidas, regado a Chateau Lafitte branco, sendo que este último já circulava pelo salão, onde todos já estavam devidamente encharcados de Logan 12 anos: “obrigado, contribuinte brasileiro”.

Ao lado da minha mesa, vejo um impaciente Jorge Amado para quem me dirijo, e da minha eloqüência etílica, disparo o maior lugar comum da minha história, tipo, “perdeu-uma-boa-oportunidade-de-ficar-calado”: “O mais amado Jorge da Bahia!” , digo, e ele me responde com um gutural “bah”! Faz muxoxo, e meneia a cabeça para o lado, suspirosa. Tento consertar pedindo desculpas, digo que também sou baiano, “do Barbalho”, e ele diz: “sim, sim”, e volta a menear a cabeça impaciente, desencarando-me.

Servem-nos o almoço após breves discursos de boas vindas e outras afabilidades. Da minha mesa, onde estava acompanhado de funcionários de embaixadas creditadas no país, autoridades locais e alguns cooperantes estrangeiros, via a grande mesa redonda com Sarney, Aristides Pereira, autoridades graduadas, locais e brasileiras, sendo que despertou-me a atenção, a maneira como o deputado Fernando Santana usava o guardanapo preso ao colarinho, que é uma das formas corretas de usá-lo, mas que dava a impressão dele estar de babador. Mas enfim, participava do rega-bofe com gosto. Ali estava o Estadista, representante máximo do meu país, que naquele momento vivia um dos seus raros momentos de orgasmo.

Ao fim do almoço falei rapidamente com o deputado Fernando Santana, perguntei pelo Leonelli, como ia minha terrinha, etc e o mesmo ratificou as informações que recebíamos do Brasil Cruzado, embora ele fizesse ressalvas quanto à timidez com que a classe dirigente abordava as questões da ordem econômica e social, etc, etc.

Meses depois, começávamos a receber funestas informações. A vaca tinha desaparecido do brejo, gêneros escasseavam, a classe produtora boicotava a política convivia, a inflação reaparecia, os fiscais de Sarney multavam. A imagem do Estadista ia-se desvanecendo a cada ato, a cada improvidência. Eu até o admirava – apesar do PDS – por ser poeta bissexto, mas ele ia se mostrando cada vez mais frouxo na conduta dos destinos do país dos 86% de inflação/mês.

Quando voltei, Ulisses regia uma tímida e lacunar Constituição, e para minha tristeza, vejo na televisão, um trêmulo e “lexotânico” presidente, jurando-a perante o Congresso e a nação.

Triste Brasil.

BERNARDO ASSIS – Psiquiatra e Psicanalista


7 comentários:

Alice Rossini disse...

Sarney foi um "predestinado". Tudo que a vida lhe deu, que poderíamos classificar como "bom" foi obra do acaso, no que ele tem de mais aleatório. Nunca se "imaginou" Presidente da República, porque nunca "imaginamos" a morte de Tancredo Neves em momento tão inoportuno da nossa história.

Imortal, ocupa cadeira da Academia Brasileira de Letras, fato que nem posso imaginar os "motivos" porque nunca fui encorajada a ler uma linha escrita por ele.

Sua importância na politica brasileira, provavelmente, deve-se á sua atuação no "seu" Estado, Maranhão, ao quel, provavelemente, enxerga como Capitania Hereditária. Conhecido por ações de grilagem, formou la pelo Norte, uma verdadeira Monarquia, representada por sua filha, filho, genro, e correligionários fiéis.

O que achava era polidez e educação, fatos recentes da sua vida política, desmascaram o cinismo, a falta de dignidade e o "apego" doentio ao poder.

Há muito tempo voce, Bernardo, ja intuía, a despeito de mais uma fase de euforia e esperança do seu povo, que não estava diante de um Estadista.

Profético texto, quanto triste é o Brasil

Carlos disse...

Lembro daquela fase em que os "fiscais de Sarney" velavam por mais um plano mirabolante e "irreal" fadado ao fracasso. Me penintencio por, em algum momento, ter sido iludido por um crápula com pose de Estadista.

Triste país este, órfão de homens com espírito publico e pródigo em cafajestes mal intencionados.

Seu texto fala da trajetória de uma esperança que sempre tranforma-se em desilusão.

Vitória disse...

Este texto, relatado ha muitos, poderia ser escrito por qualquer jovem, cheio de ideais, sedento de esperança e que um dia descobre que o Principe virou sapo.

É esta a história do nosso Brasil, carregada de momentos de euforia e de grandes decepções.

Hoje, Sarney nem usa da sua condição de imortal para ser contundente e verdadeiro na sua defesa. Os fatos falam mais alto e são mais eloquentes.

Anônimo disse...

Só um psiquiatra e psicanalista para analisar com tanta serenidade e tanta clareza o que é tão triste que é a desesperança de um povo, quanto melancólica e pálida sua reação a tanta falta de respeito por si próprio.

Selene May disse...

Amigaaa!!!

Li todos os escritos atrasados.
Todos os seus muuito bons!! o de Bernardo, porradão!!!
Algumas restrições ao do Trovador(Meia Idade) que voce deve ter feito também.
O do Consumismo ético, bom!

beijoss

Mariana disse...

Bastante atual o texto. Desde muito tempo que este "babaca" agora presidente da Casa dos Horrores (que imagem, meu Deus!) faz papel de palhaço. É isso que ele quer, honrrarias, e espaço para roubar. Cadê o Presidente, que não articula a tal da "base governista" para dar um pouco mais de decoro a seu governo???

Triste Brasil,mesmo!!! Agora diagnosticado por um psiquiatra!!!

Izabel disse...

Pois é... vivemos numa verdadeira montanha russa, só que cheia de decepções e não de estimulantes adrenalinas.

Excelente texto, com anamnese, prognóstico e diagnóstico!!!