quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O VASO QUEBRADO

Recebi de uma amiga uma parábola que conta a história de uma mulher que possuía dois vasos. Todos os dias os enchia de água e os levava, caminhando, até sua casa. Entretanto, um dos vasos estava rachado e quando chegava ao seu destino só continha a metade da água que a mulher havia colhido.

Um dia, o vaso defeituoso “pergunta-lhe”: por que, apesar do defeito, ela ainda o mantinha. Ordenou-lhe então a mulher que “olhasse” para o lado em que era carregado. Ele percebeu que o chão estava todo florido. A água, que deixava cair, possibilitava a vida no local. Ela, percebendo-lhe o defeito, semeou no lado em que a água vazava.

Já li esta parábola várias vezes e sempre acho um sentido novo para ela. Desta vez, no entanto, a história levou-me a refletir sobre os porquês de determinadas relações e como elas vão se desenvolvendo ao longo do tempo.

A não ser em casos patológicos ninguém convive com ninguém sem uma contrapartida. E esta troca acontece de milhares de formas e em todas as “moedas” emocionais e materiais possíveis.

Quando vemos uma mulher que se submete aos maus tratos do parceiro, sejam eles psicológicos ou físicos, nossa tendência é julgar o homem estúpido, violento, covarde, sádico e todos os rótulos comuns nestes casos. E é. Excetuando mulheres que não têm capacidade econômica de manterem a si e os seus filhos, embora conheça várias, guerreiras, que pela sua dignidade, libertam-se e vão à luta, pergunto-me: Que carência ou conveniência a presença do violento marido não estaria preenchendo na vida daquela mulher? Que necessidades, ainda que doentias, a violência e a submissão estão atendendo uma da outra?

Aquele filho usuário de droga cujos pais omitem-se até que a criança ou o jovem se desestruture e assim, não permita que se escancare uma desagregação subjacente na família que, não raro, passa a usar a patologia do outro para manter-se doentiamente junta. O que a olho nu seria, e é um enorme problema a ser enfrentado, nesta família, atende à necessidade de manter-se “unida”, ainda que em detrimento da vida e do equilíbrio de um dos seus membros.

Aquele chefe que impõe a seu empregado todo tipo de humilhações e constrangimentos não estaria patrão e empregado, o primeiro descarregando frustrações, recalques, insatisfações e o segundo escondendo sua covardia, incompetência e fraqueza? O poder de um alimentando a fraqueza de outro?

Poderia continuar neste desgastante e cansativo exercício de imaginar situações que poderíamos classificar de absurdas e revoltantes. Sabemos que a natureza humana e seus complexos mecanismos são capazes de torcer e distorcer fatos para permanecerem em zonas de “conforto” que as protejam de mudanças radicais e corajosas, capazes de modificar o curso de vidas para caminhos ainda desconhecidos, portanto, amedrontadores.

É humana a acomodação até o limite da não degeneração da dignidade e destruição da autoestima. Conviver com um vaso quebrado não significa carregá-lo sem saber por quê nem para quê. Ao contrário, quem acha que deve carregar um vaso defeituoso, deve, até por respeito à utilidade que poderia ter o referido objeto, fazer com que seus braços não se aviltem ao carregá-lo, nem sua expectativa se apequene a ponto de tirar-lhe a esperança de um dia, da sua deficiência, fazer alguma colheita que valha a pena o esforço.

Por isso, ao julgar ou querer intervir nas circunstâncias do “outro” corremos o risco de promover o desequilíbrio do que está sutil e convenientemente ancorado numa balança, cujo fiel é exatamente o que julgamos, sob a luz da nossa ignorância crônica, em relação ao que acontece nas vidas alheias.

Embora nos cerquem, e nelas podemos estar emocionalmente envolvidos, a verdade é que, delas nada sabemos.

ALICE ROSSINI

8 comentários:

IZABEL disse...

Alice,
Já trabalhei com esta parábola, diversas vezes em trabalhos de grupos, capacitações de pessoas, etc... E sempre que trabalho, novas interpretações e significados são trazidos para as discussões.

Esta nova abordagem que você levanta é muito interessante. O vínculo, ou as tramas vinculares, são representações subjetivas nas quais os indivíduos estão imersos. Nunca são elementos isolados, sendo sempre concebidos como articulações sucessivas, quer sejam nos âmbitos grupais, institucionais e sociais.

Que insight... AMEI!!!
Beijinhos,
Bel

Vitória disse...

Alice,

Por isso que sou sua fã de carteirinha! Já recebi esta parábola milhares de vezes e nunca a li por este ângulo. Menina, que cabeça voce tem! Olha as coisas pelos lados que ninguem consegue enxergar.

Muito bom, otimo!

beijocas

Fernando Trovador disse...

Alice

Como sempre, impressionando pela sensibilidade e a agudeza de espírito.

Os vasos quebrados são sempre carregados em benefício de algo bom que nasçe cresce e floresçe em contrapartida. Difícil de se julgar, e a conclusão exata de se saber quantas cicatrizes são necessárias para cobrir o custo desse vaso.

Na maioria das vezes , a matmatica dá lugar aos sentimentos confusos e aos mecanismos de proteção que o hábito fatalmente cria em nós, Seres Humanos.

Fernando Trovador

Sérgio disse...

Parabéns, mais uma vez.

Beijos,

Sérgio

Mariana disse...

Alice, parabéns!

Todo mundo tem seu "vaso quebrado"

Muito bom, me identifiquei na hora rs

Neto disse...

Gostei muito. Acrescento que não raramente apresentamos opiniões ou julgamentos sem conhecer a verdadeira realidade, o que, em síntese, concordo com a assertiva: desequilibramos a balança em que está ancorada a sutil convivência.

Neto.

Anônimo disse...

ADOREI! VOCE CONTINUA ÓTIMA!

PARABENS

Penha Castro disse...

Alice,

Já li esta parábola quinhentas vezes, pois ela vai e volta na rede. Só voce, com sua imaginação e sensibilidade para extrair dela tantas elocubrações, todas verdadeiras e bastante corriqueiras.

Vou procurá-la nos meus arquivos, pois devo te-la guardado.

Muito bom! Parabens!